FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA - TEXTOS DE HEGEL

Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinalava que a noção de História da Filosofia "envolve uma contradição interna". Com efeito, "a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, seu fim é a verdade. Mas a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outra coisa". Se a verdade é eterna, "ela não penetra na esfera do que passa e não tem história". Entretanto, a filosofia encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A idéia geral de filosofia permanece abstrata se não se confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral de fruto só se explicita quando efetivamente se trata de "cerejas, ameixas ou uvas".

Na realidade, cada filosofia corresponde a um momento da história, a uma etapa na conquista do espírito absoluto. Cada filosofia é "o espírito da época existente como espírito que se pensa". Ela surge "no devido momento, nenhuma ultrapassou seu tempo" (¹). As filosofias sucessivas não se refutam, mas as novas filosofias mostram as anteriores como verdades parciais passíveis de serem integradas numa síntese mais ampla que se elabora com o tempo. A história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como diz Hegel, "nós" em que vêm se reconciliar dialeticamente os contraditórios. A filosofia de Platão, por exemplo, é a síntese do imóvel ser parmenídico com a mobilidade heracliteana.

Para o senso comum, a oposição entre verdadeiro e falso é algo de fixo; habitualmente ele espera que se aprove ou se rejeite em bloco um sistema filosófico existente; e, numa explicação sobre tal sistema, ele só admite uma ou outra dessas atitudes. Não concebe a diferença entre os sistemas filosóficos como o desenvolvimento progressivo da verdade; para ele, diversidade significa unicamente contradição. O broto desaparece na eclosão da flor e poder-se-ia dizer que aquele é refutado por esta; do mesmo modo, o fruto declara que a flor é uma falsa existência da planta e a substitui enquanto verdade da planta.

Essas formas não só se distinguem, mas se suplantam como incompatíveis. No entanto, sua natureza cambiante faz delas momentos da unidade orgânica em que não só não estão em conflito mas onde tanto um quanto outro é necessário; e essa igual necessidade faz a vida do conjunto. Mas comumente não é assim que se compreende a contradição entre sistemas filosóficos; e, ademais, o espírito que apreende a contradição habitualmente não sabe liberá-la ou conservá-la livre de sua unilateralidade, e reconhecer na forma, do que parece se combater e se contradizer, momentos mutuamente necessários.

O Absoluto Por Fim Não é Senão Aquilo Que Ele é na Realidade

A vida e o reconhecimento divinos podem, então, se se quiser, ser definidos como um jogo de amor para consigo mesmo; essa idéia cai no nível da edificação e mesmo da insipidez, se lhe retirarmos a seriedade, a dor, a paciência e o trabalho do negativo. Essa vida, em-si, é a serena igualdade e a unidade consigo que nada têm a fazer com o ser-outro e a alienação, nem com a superação dessa alienação. Mas esse em-si é universalidade abstrata caso negligenciemos sua natureza de ser para-si e, por isso, o movimento espontâneo da forma. É inexato crer, ao declarar a forma como igual à essência, que o conhecimento possa se satisfazer com o em-si ou a intuição absoluta da primeira dispensam o acabamento da primeira e o desenvolvimento da segunda. Precisamente porque a forma é tão essencial à essência quanto a essência a si própria, não se deve apreendê-la ou exprimi-la apenas como essência, isto é, como substância imediata ou pura intuição de si do divino, mas também como forma e em toda riqueza da forma desenvolvida. Só então é que ela é concebida e exprimida como atual. A verdade é o todo. Mas o todo não é senão a essência que se conclui por seu desenvolvimento. Há que dizer do absoluto que ele é essencialmente resultado, que ele não é senão por fim o que ele é em verdade, e é nisto precisamente que consiste sua natureza de ser sujeito atual ou Devir de si.

O Senhor e o Escravo

Buscar a morte do outro implica em arriscar a própria vida. Por conseguinte, a luta entre duas consciências de si é determinada do seguinte modo: elas se experimentam a elas próprias e entre si por meio de uma luta de morte. Não podem evitar essa luta, pois são forçadas a elevar ao nível da verdade sua certeza de si, sua certeza de existir para si; cada uma deve experimentar essa certeza em si mesma e na outra. Só arriscando a própria vida é que se conquista a liberdade. Só assim é que alguém se assegura de que a natureza da consciência de si não é o ser puro, não é a forma imediata de sua manifestação, não é sua imersão no oceano da vida. Essa luta prova que nada existe na consciência que não seja perecível para ela, prova que ela, portanto, não é senão puro ser para-si. O indivíduo que não arriscou sua vida pode certametne ser reconhecido como pessoa, mas não atingiu a verdade desse reconhecimento como consciência de si independente.

O senhor é a consciência que é por si mesma, mas essa consciência, aqui, está além de seu puro conceito: ela é consciência para-si que é mediada consigo mesma por uma outra consciência (²), notadamente por uma consciência cuja natureza implica no fato de ela estar unida a um ser independente ou às coisas em geral. O senhor está em relação com esses dois momentos: com a coisa enquanto tal, objeto do apetite, e com a consciência cujo caráter essencial é a coisa externa. Uma vez que o senhor (a), enquanto conceito da consciência de si, é relação imediata do ser para-si, mas (b) é simultaneamente mediação, em outras palavras, um ser para-si que só o é por meio do outro, ele se relaciona (a) imediatamente com os dois e (b) imediatamente com cada um por intermédio do outro.


O senhor tem, com o escravo, uma relação mediata em virtude da existência independente, pois é precisamente a ela que o escravo está preso, ela é sua cadeia e da qual não pode se desprender na luta, o que o levou a mostrar-se dependente, posto que possuía sua independência numa coisa externa. Quanto ao senhor, ele é a potência que domina esse ser externo, pois provou na luta que o considera como puramente negativo; uma vez que ele domina esse ser e que esse ser domina o escravo, o senhor também o domina. Desse modo o senhor se relaciona com a coisa por mediação do escravo; este último, enquanto consciência de si, relaciona-se negativamente com a coisa e a ultrapassa; mas ao mesmo tempo a coisa é para ele independente e o escravo não pode, por meio de sua negação, chegar a suprimi-la; ele só faz trabalhar.

Em compensação, para o senhor, graças a essa mediação, a relação imediata torna-se a pura negação da coisa ou o seu gozo; aquilo que o apetite não conseguiu, ele o consegue; domina a coisa e se satisfaz na fruição. O apetite não chega a isso por causa da independência da coisa; mas o senhor, ao colocar o escravo contra ela e si próprio, só entra em contato com o aspecto dependente da coisa, fruindo-a puramente; deixa o aspecto independente da coisa para o escravo que a trabalha.

Este difícil texto de é característico do método hegeliano. Ele inspirou amplamente as análises de nossos contemporâneos sobre as relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegel examina simultaneamente a relação de dois "eu" e a relação de cada eu com sua própria vida. O "senhor", aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Por conseguinte, ele é mais do que ela, por sua coragem colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O vencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Por conseguinte, ele é, de início, escravo da vida e de seus objetos empíricos. Torna-se tembém escravo do senhor que o conserva (servus = conservado) a fim de ler em seu olhar temeroso e submisso o reflexo de sua vitória, a fim de se fazer reconhecer como consciência.

Hegel quer dizer que o senhor não é senhor "em-si", mas por meio de uma mediação, isto é, uma relação. O senhor se define por sua relação com o escravo (e por sua relação com os objetos que depende, ela própria, da relação com o escravo). No ponto de partida, o senhor domina os objetos da necessidade, posto que no campo de batalha ele se mostrou corajoso, superior à sua vida, portanto, aos objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor.

Graças ao trabalho do escravo, a relação do senhor com a coisa é uma relação de simples gozo que equivale à negação da coisa.

Pensamos nos versos de Valéry:

Como o fruto se funde em fruição

Como em delícias ele muda sua ausência

Numa boca em que sua forma se extingue.

Concepção Dialética da História da Filosofia

A razão é una e essa racionalidade una, um sistema e, por isso, a evolução das determinações do pensamento é igualmente racional. Os princípios gerais surgem segundo a necessidade da noção fundamental. A posição dos precedentes é determinada pelo que se segue. O princípio de uma filosofia passa, na seguinte, para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição é que é refutada. As folhas, de início, são o modo de existência mais elevado da planta, depois é o botão e o cálice que, em seguida, se transformam em envoltório a serviço do fruto; é assim que o primeiro elemento é colocado numa categoria inferior pelo seguinte.

As filosofias são as formas do Uno. Um estudo mais avançado mostrar-nos-á como progridem seus princípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente...

O estoicismo faz do pensamento um princípio, mas o epicurismo proclama vedadeiro o princípio diretamente oposto: o sentimento, o prazer para um, portanto, é o geral e para outro o particular, o individual: para o primeiro, é o homem pensante; para o segundo, o homem sensível. Somente sua reunião constitui a totalidade da noção e o homem, aliás, compõe-se dos dois elementos, do geral e do particular, do pensamento e da sensibilidade. Sua união é a verdade. Mas ambas se manifestam, uma após outra, opondo-se. O ceticismo é o princípio negativo que se eleva contra os dois precedentes; ele afasta o caráter exclusivo de um e outro, mas engana-se quando acredita os ter eliminado, pois ambos são necessários.

Desse modo, a essência da história da filosofia consiste em que princípios exclusivos transformam-se em momentos, em elementos concretos e se conservam, por assim dizer, num nó; o princípio das concepções subseqüentes é superior ou, o que dá no mesmo, mais profundo... A história de Platão não é um ecletismo, mas uma reunião das filosofias precedentes que então formam um todo vivo, uma união em uma viva unidade do pensamento...

É importante, antes de tudo, conhecer os princípios dos sistemas filosóficos e em seguida reconhecer cada um deles como necessário; sendo necessário, ele se apresenta em sua época como superior. Se se for mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas um ingrediente da nova, ela é assumida sem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são conservados. Assim, o Uno, a unidade, é o fundamento de tudo; aquilo que se desenvolve na razão progride na unidade dessa razão... Conhecer verdadeiramente um sistema é tê-lo justificado em-si. Limitar-se a refutar uma filosofia é não compreendê-la; é preciso ver a verdade que ela contém.

Nada mais fácil do que criticar, do que ver em alguma parte o caráter negativo; isto é sobretudo gosto característico dos jovens, mas se só se vê a negação, ignora-se o conteúdo que, ele sim, é afirmativo; supera-se-o sem que se encontre no interior. A dificuldade consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro; só quando são justificados em si próprios é que se pode falar de seu limites, de suas deficiências.

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