TUCÍDIDES: A guerra de Peloponeso, V, 104-5 (O diálogo dos Melos e dos Atenienses)
"Em 415 antes de Cristo, os atenienses agrediram, assediaram e destruíram militarmente a minúscula ilha de Melo. Era o décimo-sexto ano da guerra do Peloponeso, a guerra que haveria de garantir definitivamente para Atenas ou para Esparta a supremacia política sobre todo o mundo grego. Atenas, a cidade que sob o governo de Péricles se tornara a 'escola viva da Grécia', aquele ano tomou as armas contra a colônia espartana que se recusava a submeter-se a seu domínio. Antes de pô-la a ferro e fogo, os Atenienses enviaram uma embaixada para entabular tratativas. Os melos não apresentaram diante da multidão os delegados, mas os convidaram a dizer as coisas para as quais haviam chegado. Os embaixadores atenienses disseram o seguinte:
"Estamos agora aqui e vô-lo demonstraremos, a fim de consolidar o nosso império e apresentaremos propostas capazes de salvar a vossa cidade, pois não queremos estender o nosso domínio sobre vós sem correr riscos e, ao mesmo tempo, salvar-vos da ruína, para o bem de ambas as partes".
(Os Melos responderam): "E como poderemos ter o mesmo interesse, nós tornando-nos escravos e vós, sendo patrões?"
(Atenienses): "Enquanto vós tereis interesse em submeter-vos antes de sofrer os mais graves males e nós teremos o nosso ganho não vos destruindo completamente".
(Melos): "De modo que não aceitareis que nós fôssemos, em boa paz, amigos em vez de inimigos, conservando intacta a nossa neutralidade?"
(Atenienses): Não, porque nos prejudica mais a vossa amizade do que a hostilidade aberta: de fato, aquela, aos olhos de nossos súditos, seria prova manifesta de fraqueza, enquanto o vosso ódio seria testemunho da nossa potência, e não se poderá dizer que vós, ilhéus e menos poderosos do que outros, resististes vitoriosamente aos senhores do mar".
(Melos): Também nós (e podeis acreditá-lo) consideramos muito difícil apoiar-nos em vossa potência e contra a sorte, se não for igualmente favorável para ambos. Contudo, temos firme confiança em que, no que respeita a fortuna que provém dos deuses, não devemos levar a pior, pois, fiéis à lei divina, insurgimos em armas contra a injusta opressão".
(Atenienses): "Se for pela benevolência dos deuses, nem sequer nós temos medo de ser por eles abandonados. Os deuses, de fato, segundo o conceito que deles temos, e os homens, como se vê claramente, tendem sempre, por necessidade de natureza, a dominar onde quer que se prevaleça pela força. Esta lei não fomos nós que a instituímos e nem fomos os primeiros a aplicá-la; assim, da forma como a recebemos e da forma como a transmitiremos ao futuro e para sempre, nós nos servimos dela, convencidos que também vós, como os outros, se tivésseis a nossa potência, o faríeis".
Nesta altura os atenienses interromperam a negociação, se retiraram, e tomaram conta da ilha".
PERGUNTA: O historiador grego Tucídides, na sua obra A Guerra do Peloponeso, reconstrói o diálogo entre os Melos e os Atenienses, sublinhando o brutal realismo destes últimos. Durante esta guerra, que marca o declínio de Atenas, manifesta-se uma mudança radical da mentalidade e dos costumes atenienses. Qual a relação que tudo isso tem com o nascimento e o desenvolvimento daquele movimento cultural que conhecemos com o nome de "sofística"?
HÖSLE: A sofística é o primeiro grande momento iluminístico da história. Trata-se de um movimento que é peculiar à cultura grega. A cultura indiana, por exemplo - uma cultura sob muitos aspectos muito elevada - desenvolveu uma filosofia impressionante: há metafísicas de grande rigor lógico, de grande fantasiosidade e construtividade. Mas na cultura indiana nunca houve um fenômeno como o iluminismo. Nunca houve uma tentativa de pôr em dúvida, baseando-se em argumentos racionais, os valores aceitos pela sociedade. Isto é o que acontece com a sofística. Por um lado, isso constitui sem dúvida um passo necessário para o progresso da humanidade. Se não estivermos dispostos a pôr em dúvida as nossas convicções, baseadas na autoridade e na tradição, evidentemente nunca faremos progressos. Por outro lado - e isso o podemos ver como resultado fantástico da sofística - se a crítica à moral tradicional não é capaz de desenvolver de modo construtivo novos valores, então a última palavra do iluminismo deve ser o niilismo, ou seja, a negação de qualquer valor e a negação de qualquer relação de direito e de pretensão de direito, para além das relações fatuais de poder.
Isso é o que acontece no Diálogo dos Melos: vemos que a convicção, profundamente enraizada na alma humana, de que existe um direito que importa respeitar e certas normas e certos valores no tratamento do outro, é radicalmente negada.
Tucídides, A Guerra do Peloponeso, V, 105 (continua O diálogo entre os Melos e os Atenienses)
"No inverno seguinte, tendo chegado um novo exército de Atenas, acossados por uma assédio muito forte, e tendo havido a infiltração de traidores, os melos renderam-se sem condições.
Os atenienses passaram pelas armas todos os melos adultos caídos em suas mãos e tornaram escravas as crianças e as mulheres"
PERGUNTA: A sofística desenvolve-se na segunda parte do século V antes de Cristo, quando chega a Atenas, vindo de todo o mundo grego, um grupo de intelectuais: Protágoras de Abdera, Górgias de Lentini, Trasímaco de Calcedônia, Hípias de Hélide, Crítias de Muníquia, Pródico de Ceo. Poderia, por favor, descrever as características desta nova figura intelectual?
HÖSLE: O sofista tem algumas características que acabaram sendo preocupantes para a cultura ateniense e que o tornaram odiado por uma parte desta cultura. Ele é um intelectual de profissão, é estrangeiro, e ensina a pagamento: estas são as grandes acusações dirigidas ao sofista. Ele realiza, portanto, negócio com o saber, é um artesão do conhecimento.
Tudo isso comporta, aos olhos da cultura ateniense - a qual é, até Platão (o principal artífice destas acusações) fundamentalmente aristocrática -uma desvalorização social e também uma desvalorização moral. "Há", diz Platão, "uma espécie de prostituição da cultura que os sofistas realizam". Contudo, a sua obra está bem longe de ser tão universalmente desprezada; pelo contrário, é profundamente apreciada e é necessária.
A dimensão política e, além disso, também acentuadamente democrática da vida social de Atenas na segunda metade do séc. V , exige uma profunda transformação das formas de educação tradicional, das competências tradicionalmente assumidas; há assembléias em que se confrontam as diversas possibilidades de escolha política, em que se trata de obter maiorias, de tomar decisões; há os tribunais que funcionam, também estes, com debates, persuasão, maiorias. Portanto, importa ser capaz de comportar-se adequadamente nestes novos âmbitos centrais da vida social. Por isso já não basta a velha forma de educação dos gentios, própria dos jovens aristocratas atenienses; já não basta aprender Homero de memória, conhecer alguma coisa sobre a teologia de Hesíodo e, de resto, limitar-se ao exemplo dos pais ou dos anciãos de família. Exigem-se novas competências, em primeiro lugar a técnica da persuasão, a retórica. Exige-se, portanto, a capacidade de convencer as multidões reunidas em assembléia ou os juízes do tribunal.
PERGUNTA: Górgias de Lentini, uma das figuras de maior importância na sofística, é autor do tratado do Não Ente, texto abertamente polêmico com a filosofia de Parmênides. Poderia resumir brevemente as teses de Górgias e o objetivo de sua argumentação?
HÖSLE: O título Não Ente, que foi realmente atribuído ao texto mais tarde, demonstra que é um texto oposto à filosofia de Parmênides. Se Parmênides é a tese da filosofia grega, Górgias é a antítese. Recordemos que Parmênides está convencido de que existe só o ser e que este ser absoluto é cognoscível, é comunicável pelo pensamento e pela palavra humana. Górgias nega exatamente isso que Parmênides quis dizer.
Na filosofia de Górgias encontramos os membra disiecta, os membros divididos, da unidade de Parmênides. Górgias desenvolve o argumento do seu tratado em três teses fundamentais.
A primeira tese é: "não há nada". Com isso, naturalmente Górgias não quer dizer que de fato não exista nada, mas quer dizer que não existe um ser da estrutura do ser parmenídeo, que não há nada de absoluto.
A segunda tese diz: "mesmo que existisse algo, não o poderíamos conhecer"
A terceira tese afirma: "mesmo que nós pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos comunicá-lo".
Temos aqui, numa grandiosa e simples estrutura analítica, as três categorias fundamentais da filosofia: a categoria ontológica, o ser; a categoria gnoseológica, o conhecer; e a categoria no plano da comunicação, o comunicar; categorias que correspondem às categorias da objetividade, da subjetividade e da intersubjetividade.
A todas estas categorias Górgias nega um valor absoluto. De acordo com ele, o ser que existe é apenas um ser flutuante e empírico, o conhecimento que nós temos é um conhecimento empírico, e a comunicação que temos é uma comunicação que, finalmente, deve ser influenciada pela retórica, que, por sua vez, não se fundamenta em verdades absolutas.
GÓRGIAS - Não Ente
"Em primeiro lugar: nada é; em segundo, mesmo que algo fosse, não seria compreensível ao homem; em terceiro lugar, mesmo que houvesse algo compreensível, não seria comunicável e explicável aos outros.
Que nada é, demonstro-o desta forma: se de fato algo existe, ou é ser ou é não-ser, ou é ser e não-ser ao mesmo tempo.
Mas o não-ser não existe porque se o não-ser existisse, ele seria e não seria ao mesmo tempo.
De fato, pensado como não-ser, não existe, mas enquanto existente exatamente como não-ser, existe.
Mas é completamente absurdo que algo seja e não seja ao mesmo tempo; portanto, o não-ser não existe.
Nem sequer o ser existe.
Se de fato o ser existisse, ou é eterno ou é gerado, ou é eterno e gerado ao mesmo tempo.
Se o ser é eterno não tem princípio algum; não tendo princípio, é ilimitado; se é ilimitado, não está em lugar algum; se não está em lugar algum, não existe.
O ser, porém, não pode sequer ter nascido.
Se de fato nasceu, ou nasceu do ser ou do não-ser; mas não nasceu do ser se de fato existe; como ser não pode ter nascido, mas existe desde sempre.
E não nasceu nem sequer do não-ser, porque o não-ser não pode gerar coisa alguma; portanto, o ser nem é gerado e nem pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, ou seja, eterno e gerado, pois as duas coisas se excluem mutuamente; portanto, se o ser não é eterno nem gerado nem todas as duas coisas ao mesmo tempo, ele não existe".
PERGUNTA: O Não Ente é a única obra filosófica de Górgias que se conhece, mas Górgias foi também um grande orador, e entre suas obras há manuais de retórica e exemplos de discursos. Em um destes, O Encontro de Helena, Górgias tece um célebre elogio ao poder da palavra dominadora dos afetos e das paixões do homem. Que significado o senhor atribui a este elogio da arte retórica?
GADAMER: Utilizei-me sempre deste elogio para mostrar que o sofista é o verdadeiro técnico. Os sofistas eram "técnicos do espírito", grandes oradores e grandes argumentadores lógicos. Ufanos desta nova capacidade acreditavam que ela fosse tudo. Eles representavam o que para nós, em nossa sociedade, é o "monopólio do especialista". Sócrates mostrou que o especialista não sabe o que é o bem. Defendo que também nós temos necessidade de uma racionalidade política e social dos valores. Neste sentido, os sofistas não são o mal, mas a sua prática manifesta-se limitada no que tange às suas pretensões, sobretudo quando ela é empregada no sentido que para nós assume o termo "sofística", ou seja, quando se refere a argumentações que contrastam com o senso comum.
Através da retórica, a parte mais fraca numa disputa torna-se a mais forte, e nisso está presente uma degeneração do saber e do saber fazer, chegando ao ponto em que a prática do orador e do argumentador se torna um abuso. Sócrates, através de Platão, indicou-nos os riscos que se correm quando os homens não tomam em conta nas suas perguntas a responsabilidade a assumir quanto ao bem da humanidade no seu conjunto.
GÓRGIAS - Elogio de Helena
"A palavra é uma poderosa senhora que, embora dotada de um corpo muito pequeno e invisível, realiza as obras mais divinas; ela pode acabar com o temor, tirar a dor, suscitar a alegria e aumentar a compaixão. Quem a escuta é invadido por um calafrio de terror, por uma compaixão que arranca as lágrimas e deixa um ardente desejo de dor. Mas o fascínio divino que suscita a palavra é também geradora de prazer e pode liberar dor. A força da sedução, acompanhada da opinião da alma, a seduz e a persuade, e a transforma por meio de seu encanto".
PERGUNTA: Não só Górgias, mas todos os sofistas desenvolveram muito a retórica enquanto arte do discurso persuasivo e da argumentação convincente. Que importância adquire a retórica e como se relaciona com as concepções filosóficas da sofística?
HÖSLE: Isto é muito importante. Certamente esta foi uma das causas pelas quais a sofística teve tamanho sucesso intelectual em Atenas. Os Sofistas eram professores que encinavam aos jovens aristocráticos de Atenas como se venciam as causas nos processos, como se conseguia convencer outras pessoas. Claro que a importância da palavra cresce quando não se acredita mais num ser absoluto. Para Parmênides, o ser absoluto é algo que se precisa entender baseando-se numa clara intuição lógica. Dado que para os Sofistas não há verdade absoluta para além das nossas opiniões, a coisa mais importante, para se ter poder, é influenciar as nossas opiniões. Por isso, a Sofística dá tanta importância à retórica, pois pela retórica nós manipulamos, nós formamos as opiniões de outras pessoas e somos capazes de usá-las em favor do próprio interesse.
É famosa a frase de Protágoras, segundo a qual ele era capaz de transformar o logos mais fraco no argumento mais forte, ou seja, capaz de fazê-lo parecer melhor. Isso não significa que Protágoras quisesse fazer parecer verdadeiro o que é falso: Protágoras negaria a existência de uma verdade para além do parecer. Protágoras diria que o grande orador é aquele que consegue fazer parecer o que quer e, desta maneira, faz a verdade.
A respeito da análise da linguagem, a sofística tem um grande mérito: exatamente por causa da desconfiança com o conhecimento humano é que criticamos a linguagem. Vários Sofistas, como Pródico por exemplo, analisam os homônimos: analisam o fato de que se trata de palavras que significam coisas diferentes e que um filósofo deve ter consciência deste fato para não ser seduzido pela linguagem a ponto de cometer erros.
Protágoras desenvolve o tema da orthoépeia, da justeza das palavras. Ele descobre, por exemplo, que alguns substantivos da língua grega com um significado masculino têm um gênero gramatical feminino, e vice-versa. A análise de homonímias, metonímias, como a encontramos em Demócrito é certamente uma contribuição importante para uma fundação mais rigorosa e mais crítica da filosofia.
O que Górgias dizia, além da cisão da unidade de ser, pensamento e palavra, que encontramos também em Parmênides, deve conduzir a uma crítica da linguagem. Importa descobrir que a linguagem, a palavra e o pensamento não são idênticos, mas que há distinções entre os mesmos, como, por exemplo, no caso da homonímia.
PERGUNTA: Platão define geralmente os sofistas como caçadores de dinheiro, comerciantes no atacado de noções relativas à alma, atletas que aplicam a arte da luta à discussão. Mas Platão fala também da "nobre sofística" em alguns de seus diálogos, referindo-se em especial a Protágoras, ao qual, porém, se opõe polemicamente. O que está em jogo na polêmica entre Platão e Protágoras?
VEGETTI: A famosa frase segundo a qual o homem é a medida de todos os valores foi interpretada de maneiras diferentes, entendendo "o homem" como gênero humano contraposto ao divino, ou então como o homem no sentido de indivíduo singular. Mas provavelmente a tese de Protágoras pode ser definida desta forma: não há justiça que tenha origem em princípios transcendentes ou externos ao mundo humano; a justiça do mundo humano é o que é decidido pela lei; é justo o que a lei da cidade considera tal; a lei da cidade é promulgada por uma maioria democrática dentro da cidade; portanto, a cidade, os homens enquanto membros da cidade são a medida dos valores porque promulgam as leis que sancionam o justo e o injusto.
Esta tese de Protágoras é tese perigosa, perigosa para a própria democracia para a qual quer oferecer fundamento e justificação inclusive moral. Por um lado, desta maneira considera-se que a vida da cidade seja auto-suficiente moral e juridicamente; por outro, porém - e este raciocínio será feito por alguns sofistas - se não há algum fundamento objetivo para as normas morais e políticas, se este fundamento reside apenas no poder de quem é capaz de impor as leis, ou através de maiorias ou através de atos de imposição tirânica, então se deverá concluir que a norma moral está totalmente à mercê dos poderosos, que a "norma moral" , conforme dirá um sofista como Trasímaco, é unicamente o mascaramento dos interesses do poder.
SÓFOCLES: Édipo tirano vv. 830 - 924)
(Canto da fé que ilumina e da dúvida que anuvia)
"Peço apenas probidade e justiça
e fé na lei moral
que os deuses criaram dos antigos cimos de Olimpo
a montanha sagrada.
Nenhum homem criou estes preceitos
nem nunca estes se perderam no esquecimento ou decaem no tempo
assim como o homem afirma a respeito das causas primeiras desde fontes naturais
gerados como pura e eterna fonte.
Acima dos preceitos regras eternas domínio absoluto
tirano devora dinheiro e homens
aspira ao poder absoluto
e numa hora fatal
avança sobre si mesmo e acaba no lodo.
Um homem ambicioso
mostra-se devoto dos deuses
guia-o seu demônio na solução do enigma
tem em desprezo a lei moral
amam-no os deuses e o seu povo prospera.
Mas que homem é aquele
que escarnece da justiça
toma o que quer não se cuida com palavras e ações da honestidade e da verdade
e saqueia os sagrados altares?
Pode ele esperar de escapar
das conseqüências da sua violência?
........................................................
Ó Júpiter universal
se escutas os nossos cantos
mostra-nos ainda teu poder imortal
e nesta hora nefasta
em que os mentirosos dominam
e espalham o seu horrendo verbo
joga a tua lança admoestadora"
VEGETTI: a norma diz respeito aos fracos, aos submissos: não tem a ver com os poderosos que a impõem a seu benefício próprio. Exatamente a partir destas consequências do pensamento sofístico nasce a reação socrática e platônica: se a cidade deve sobreviver, se a cidade não deve abandonar-se a um conflito insolúvel pelo poder, deve haver princípios de valor que valham para todos e que não fiquem abandonados ao arbítrio de quem detém o poder, seja ele constituído pela maioria democrática, seja um tirano ou um grupo de oligarcas. Importa encontrar normas independentes em relação ao poder e às leis que poder emana; importa encontrar um fundamento objetivo para os valores morais que devem regular a vida política. Este é o ponto de partida fundamental da reflexão platônica: como fundar objetivamente os valores, como libertá-los daquele relativismo com respeito ao poder, a que os sofistas, de algum modo, pareciam tê-lo ligado?
PERGUNTA: Sabemos que Protágoras, autor da Constituição da cidade de Turi, é considerado o fundador de uma tradição que tomará o nome de "direito positivo". Isso significa que, para ele, o direito não tem origens divinas, mas é apenas convenção, pacto entre os homens?
HÖSLE: A tradição grega estava firmemente convicta que existisse algo como um direito divino, que o princípio do direito fosse algo que transcendesse a vontade dos homens. Lembremos a importância de Thémis, de Diké na tradição grega. A importância de Protágoras na filosofia do direito reside na tentativa de fundar o direito na vontade dos homens. Protágoras parece o predecessor de uma teoria liberal-democrática do direito; o direito é a coisa sobre a qual os homens chegam a um acordo pacífico: isso tem grandes vantagens enquanto liberta o homem do medo de vínculos irracionais. Por outro lado, o grande problema da filosofia do positivismo do direito - e isso já se manifesta na sofística - é o de estabelecer se uma cidade tem o direito de emanar leis, mesmo por maioria, que estão em contraste com certos princípios fundamentais de dignidade dos seres humanos. Este é um problema que foi desenvolvido de maneira monumental por Sófocles. Sófocles faz Antígona dizer, contra Creonte, versos absolutamente memoráveis, nos quais Antígona insiste em que há normas divinas que o ser humano não pode transgredir; por exemplo, o ser humano não tem o direito de negar sepultura a um morto, mesmo que tenha sido inimigo da pátria.
SÓFOCLES; Antígona, vv. 440-469
Creonte: Ó tu, que mantens os olhos fixos no chão, confessas,, ou negas, ter feito o que ele diz? (NB: enterrado o irmão, que, no entanto, era inimigo da pátria, da qual Creonte era o governante)
Antígona: Confesso o que fiz! Confesso-o claramente!
Creonte: Podes ir para onde quiseres, livre da acusação que pesava sobre tid! Fala, agora, por tua vez; mas fala sem demora! Sabias que, por uma proclamação, eu havia proibido o que fizeste?
Antígona: Sim, eu sabia! Por acaso poderia ignorar, se era uma coisa pública?
Creonte: E apesar disso, tiveste a audácia de desobedecer a essa determinação?
Antígona: Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! - Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação. E, se morrer antes de meu tempo, isso será, para mim, uma vantagem, devo dizê-lo! Quem vive, como eu, no meio de tão lutuosas desgraças, que perde com a morte? Assim, a sorte que me reservas é um mal que não se deve levar em conta; muito mais grave teria sido admitir que o filho de minha mãe jazesse sem sepultura; tudo o mais me é indiferente! Se te parece que cometi um ato de demência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura! (Trad. portuguesa de J. B. Mello e Sousa, Antígone, Rio de Janeiro, Tecnoprint, s. d. , pp.85-6)
PERGUNTA: Vimos como a sofística analisou criticamente a relação entre governantes e governados e elaborou novas concepções do direito, da justiça e do poder; em alguns fragmentos dos sofistas há inclusive acenos para a religião como instrumento de domínio sobre o povo. Qual a atitude da sofística a respeito da religião?
HÖSLE: Acredito que a crítica da religião, que inicia no século V AC, tenha três fases. A primeira é uma crítica anda interna à religião, e se trata do problema da teodicéia - o problema que cada pessoa religiosa tem, o de ver pessoas justas sofrerem no mundo e pessoas injustas estarem bem. Esta crítica à religião, conforme é desenvolvida em frases às vezes tremendas na tragédia grega, é crítica que ainda continua fiel a concepções religiosas e tenta apenas transcender um conceito ingênuo da divindade para alcançar um conceito mais profundo.
O segundo nível de crítica à religião é o que se pode chamar a crítica científica. De acordo com este nível, não tem sentido pensar que as divindades agem no mundo. Este é apenas um pretexto das pessoas que são incapazes de explicar os verdadeiros nexos causais. O exemplo mais belo disso é a escrito sobre a epilepsia de Hipócrates, escrito em que é dito claramente que é sinal de fraqueza dos médicos atribuírem causas divinas a esta doença, que era denominada a doença sagrada. Segundo Hipócrates, esta doença tem causas normais como todas as outras doenças e pode ser resolvida de modo racional, pode ter cura.
O terceiro aspecto de crítica da religião é uma crítica antropológica, segundo a qual a religião nasce das exigências dos seres humanos. Estes - é dito - chamam divindades as suas próprias necessidades; por exemplo, Demétrio tem a ver com o pão, Dionísio, com o vinho, etc. Por um lado, a necessidade dos seres humanos, por outro, o interesse de pessoas astutas que percebem que através da religião podem guiar as massas. Este é o famoso fragmento de Crítia que antecipa idéias nietzscheanas, segundo as quais um ser humano inteligente inventou a divindade para que os seres humanos fossem capazes ou se sintam obrigados a respeitar o bem, até mesmo quando não devem temer serem punidos imediatamente. Este é um dos grandes problemas da sofística. Esta, enquanto rejeita um fundamento da moral que esteja além do próprio ser humano, tenta fundar a moral sobre o egoísmo racional. E este, segundo minha opinião, é absolutamente impossível, e na sofística todas as formas de utilitarismo, de hedonismo que são desenvolvidas procuram dizer o seguinte: se houvesse uma pessoa que não devesse temer nada agindo de modo imoral, por que deveria agir moralmente? No Anonymus Iamblici, texto bastante fascinante da sofística, é desenvolvida a idéia de um homem feito de aço, não mortal, e se diz que, para tal pessoa feita de aço não haveria motivo algum para que respeitasse a moral. A razão de que dispomos para respeitar a moral é o fato de querermos evitar que sejamos punidos por outros. Deste modo, porém, fica claro que uma pessoa que deve morrer em qualquer caso não tem motivo algum, se não antes da própria morte, de cometer alguns crimes gravíssimos, se esta fosse a base da moral. Por isso, o problema da religião torna-se importante na medida em que, baseando-se nesta convicção, se torna necessário inventar algo que consiga manter as massas sob controle.
CRÍTIAS: Sísifo
Houve um tempo, quando sem ordem era a vida humana, e bestial, dominada pela força, um tempo em que não existia prêmio para os bons, nem castigo para os maus.
Em seguida, penso que os homens emanaram as leis para punir, para que a Justiça fosse senhora igualmente absoluta de todos e tivesse como discípula a Força; e fosse punido toda pessoa que pecasse.
Mas dado que as leis desencorajavam os homens a cumprirem delitos explícitos, mas não às escondidas, então, suponho eu, um homem sábio de mente e engenhoso inventou para eles o temor dos deuses, de tal forma que existisse um espantalho para os malvados também para o que fizessem às escondidas, pensassem ou dissessem.
Para atingir a mente dos homens estabelecia a morada dos deuses lá donde sabia que vinham aos mortais os sustos e os consolos para sua mísera vida: da esfera celeste, onde via os raios, onde ouvia os horrendos trovões e o corpo estrelado do céu, obra admiravelmente vária de um artífice sábio: o Tempo; aí caminha fúlgida a massa quente do Sol, e desce sobre a terra a úmida chuva.
Assim, agitando tais sustos diante dos olhos dos seres humanos, e servindo-se deles, construiu, como artista, com a palavra, a divindade, colocando-a num lugar adequado a ela; e derrotou com as leis a ilegalidade.
Por este caminho, portanto, eu creio que no princípio alguém tenha persuadido os seres humanos a crerem na existência dos deuses.
PERGUNTA: A polêmica entre Sócrates e os Sofistas revela uma situação de crise moral e intelectual da sociedade grega: o homem grego, descoberta a liberdade e a potência do pensamento, do discurso e do raciocínio, acha-se desorientado, sem pontos firmes tradicionais aos quais ligar a própria reflexão e a própria ação. Qual é a responsabilidade dos sofistas na crise dos valores éticos e políticos que abalou Atenas no final do século V?
GADAMER: É muito difícil abrir mão da convicção de que os sofistas fossem intelectuais destruidores. Esta é a imagem traçada por Platão, pois ele propugnava um princípio de solidariedade para a construção de uma ordem na sociedade. Tucídides descreveu magnificamente a desagregação dos costumes, o assédio de Atenas, a peste e assim por diante; mas atribuir a responsabilidade por tudo isso aos sofistas, a estes mestres que ensinavam a virtude política para conseguir o sucesso na vida pública, é uma lenda que já é hora de repensar.
Não se pode responsabilizar pela crise de Atenas estes intelectuais - os Sofistas. Eles, no fundo, apenas procuraram tornar os valores tradicionais de novo convincentes na sua validez. Mas Sócrates viu com maior profundidade do que eles. Viu que a raiz da qual nasce uma autêntica solidariedade entre os seres humanos devia ser novamente construída. Esta era a sua pergunta admoestadora: para onde todos estais correndo? Preferi, antes, uma justa condução da vida. Isso é o que importa, e não aquela pressa, aquela excitação em passar à frente dos outros para ter sucesso.
PERGUNTA: Pode-se falar hoje de atualidade da sofística? E que utilidade pode ter hoje um repensamento daquele momento da história do pensamento?
HÖSLE: Estou convencido de que a sofística é um momento necessário da história do espírito. Algumas formas da sofística - ou seja, de filosofia negativa, de uma ontologia empirista, de ceticismo, de relativismo moral, de uma tentativa de reduzir a moral ao próprio interesse - todas estas formas aparecem e reaparecem na história da filosofia. Infelizmente o nosso século quase teve apenas grandes filosofias sofísticas. O pensamento dominante em nosso século é seguramente um pensamento relativista e niilista. Por isso penso que, analisando a sofística, podemos compreender muito sobre os princípios da filosofia moderna: a filosofia moderna é, em grande parte, uma repetição da sofística, em níveis mais elevados, diferenciados, baseada sobre a negação de normas e princípios ontológicos absolutos. Por isso acredito quem quer compreender o nosso tempo, deve estudar a sofística. Ainda mais do que a sofística, deve estudar-se a superação da sofística, efetuada por Sócrates e Platão. A grandeza da cultura grega consistiu em que essa, intelectual e filosoficamente, chegou a um sistema filosófico - o de Platão - no qual os momentos negativos da sofística foram integrados num sistema complexo que concedia espaço ao não-ser e à história. Com Platão foram superadas as conseqüências negativas e niilistas desta postura.
Enciclopedia Multimediale delle Scienze Filosofiche
RAI - Itália - www.emsf.rai.it
Ir para Filosofia
.