FILOSOFIA KANTIANA - TIPOLOGIA DO AMOR

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Mostraremos como a introdução do dever de amar, que implica deveres derivados de beneficência (Wohltätigkeit), reconhecimento (Dankbarkeit) e simpatia (Teilnehmung),1 não compromete a pureza da lei moral. Ainda que a origem a priori da lei moral continue válida, a Metafísica dos Costumes trata da moral aplicada a seres sensíveis racionais, para os quais alguns sentimentos podem ser úteis na realização de ações morais, quando o respeito pela lei não é um móbil suficiente. Por fim, faremos uma comparação entre o amor-virtude e três outros tipos de inclinações: o desejo, a amor-afeto e o amor-paixão, utilizando os escritos sobre Antropologia.

1-O amor-simpatia da Fundamentação

A simpatia ou compaixão pela sorte alheia, enquanto um dos sentimentos que leva a beneficência, é tematizada no já conhecido exemplo da Fundamentação. Ao explicar em que consiste a diferença entre agir conforme o dever e por dever, Kant nos apresenta o interessante exemplo do filantropo, distinguindo aquele que possui um "íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta" do que faz caridade por dever:

"Admitindo que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pessoal que apaga toda compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a própria; se agora, que nenhuma inclinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse a ação sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o seu autêntico valor moral." (G, 4:398)

Podemos distinguir claramente neste caso uma ação realizada conforme o dever da realizada por dever, a primeira é a realizada pelo filantropo simpático à miséria alheia; a segunda, realizada pelo filantropo insensível ao sofrimento de outrem. A diferença entre uma e outra é que o móbil da primeira são inclinações sensíveis, enquanto a segunda é realizada pelo respeito à lei. Kant considera que, se a compaixão pela sorte alheia for um móbil da ação, não há nesta verdadeiro valor moral. Se nós considerarmos esse exemplo à luz da história da Filosofia, vemos que ele é claramente provocativo. Afirmar que a ação benevolente do homem que não é tocado pela miséria alheia é exatamente aquela que possui valor moral obviamente acentua a diferença de Kant com os empiristas, tais como Hume e Hutcheson, os quais atribuem, ao sentimento natural da simpatia ou compaixão, o papel de móbil virtuoso.2

Ainda que, aparentemente, o exemplo do filantropo na Fundamentação indique que a mera presença de sentimentos morais torne uma ação correta moralmente sem valor, a análise de comentadores, tais como Barbara Herman e Christine Korsgaard concedem que a mera presença da simpatia não torna uma ação sem valor moral, desde que o respeito tivesse sido um móbil suficiente para a realização da ação. Herman considera que não seria defensável a idéia de que a ausência de inclinações fosse uma condição necessária para a moralidade de uma ação: "A aparente conseqüência desta visão.... seria no mínimo perturbadora, enquanto ela consideraria uma ação por dever realizada de forma ressentida ou com rancor preferível a um ato similar realizado com afeição e prazer".3 Korsgaard igualmente sustenta que, quando a simpatia estiver presente, mas a pessoa for motivada de forma suficiente pelo dever, sua ação tem valor moral e "inclusive sua simpatia inata contribuirá para o prazer que ela terá com a ação".4

A tese defendida, tanto por Herman quanto por Korsgaard - qual seja, que se a simpatia não é o móbil de uma ação moral, a mera presença desta não diminui o valor moral de uma ação - é corroborada pela diferença que Kant estabelece entre o princípio da utilidade e o apreço de Hutcheson à simpatia enquanto sentimento moral. Na Fundamentação, ao analisar o papel da simpatia em Hutcheson, Kant defende que esse sentimento é mais próximo da moralidade do que o princípio da utilidade, que apenas nos ensinaria a calcular melhor. Ainda que ambos sejam princípios empíricos e não forneçam a adequada pureza e formalidade de um princípio moral, ao menos o sentimento moral "apresenta à virtude a honra de atribuir a ela, imediatamente, o prazer e a estima que temos", ao invés de admitir "que não é pela sua beleza, mas pelas suas vantagens que estamos a ela ligados". (G, 4:443)

Na Crítica da Razão Prática, a necessidade de fundar a moralidade num princípio prático não-material leva, obviamente, à recusa do papel de móbeis morais aos sentimentos tais como amor, benevolência e simpatia. O objetivo nesta obra é provar, ao menos a possibilidade da razão ser capaz de nos constranger a agir moralmente, a despeito de bons ou maus sentimentos e nos dar a forma de tal princípio prático. Provar que a razão pura pode ser prática é provar que ela pode, sozinha, determinar a vontade. Nós falharemos em prová-lo, caso a vontade seja sempre dependente de condições empíricas. Se a vontade provar que é sempre fundada em sentimentos ou paixões, isto significaria que a razão pura não pode ser prática e que a causalidade de liberdade é impossível. Tanto a Fundamentação, quanto a Crítica da Razão Prática têm como objetivo a obtenção do imperativo categórico ou da lei moral, respectivamente, numa tentativa de provar que a razão pode determinar a vontade, sem o auxílio móbeis empíricos. Neste contexto, compreende-se a crítica à simpatia e sentimentos benevolentes em geral, visto que estes seriam empíricos e contingentes, não podendo ser tomados como fundamento de determinação da vontade, tanto objetivo (motivo), quanto subjetivo (móbil), sendo, portanto, inapropriados para a moralidade fundada na razão.

A mesma simpatia que não possuía valor moral intrínseco na Fundamentação, aparece na Doutrina da Virtude como um sentimento de prazer e desprazer que deve ser utilizado para promover a benevolência, podendo-se constituir num móbil.

"A alegria por simpatia [Mitfreunde] e compaixão(sympathia moralis) são sentimentos sensíveis de prazer e desprazer (os quais são chamados de estéticos) em relação ao estado de alegria e dor de outrem. . A natureza implantou em nós a receptividade a estes sentimentos. Mas usá-los para promover a benevolência ativa e racional é ainda um dever particular, mas apenas condicional, chamado dever de humanidade (humanitas)." (MS, 6:456)

Nesta citação, Kant admite explicitamente a possibilidade do uso da simpatia como um incentivo, um meio para ativar ações benevolentes. Mais do que isso, usar sentimentos sensíveis é um dever chamado dever de humanidade. Parece-nos que somos confrontados com uma modificação na compreensão do papel da simpatia como móbil. Haveria realmente uma mudança na ótica kantiana quanto ao papel dos sentimentos de simpatia nos anos 90, em textos tais como a Doutrina da Virtude (1797)?

2.O amor na Doutrina da Virtude:

O próprio Kant admite que uma Doutrina da Virtude, como parte de uma metafísica dos costumes, deve poder admitir um sistema de conceitos independentes da intuição empírica :

"Se há uma filosofia sobre algum objeto (um sistema de conhecimento racional a partir de conceitos), então deve haver para esta filosofia um sistema de conceitos racionais puros, independentes de toda condição da intuição, isto é, uma metafísica." (MS, 6:375)

O filósofo que quer construir uma metafísica dos costumes procura conceitos puros racionais, independentemente de condições empíricas. Para ser fiel ao espírito da Metafísica dos Costumes, nós deveríamos obter, na Doutrina da Virtude, um sistema a partir de conceitos puros racionais:

"Se renunciarmos a este princípio e, para determinar os deveres, partimos do sentimento patológico, ou puramente estético, ou ainda sentimento moral (prático-subjetivo, ao invés de objetivo), ou seja, partirmos da matéria da vontade, da finalidade, e não da forma da vontade, ou seja, da lei, para determinar a vontade: então não encontraremos nenhum fundamento metafísico para a Doutrina da Virtude, pois o sentimento, independentemente do que o provoca, é sempre físico" (DV, 6:376)

Uma Doutrina da Virtude, sendo parte de uma metafísica dos costumes, não pode ser fundamentada em sentimentos, visto que sentimentos são sempre físicos, relacionados à dor e ao prazer. Apesar deste alerta feito no Prefácio, encontramos o dever de amar como um primeiro capítulo (Do dever de amar a outros homens) da primeira seção (Dos deveres do homem em relação aos outros como homens) da segunda parte (Dos deveres de virtude em relação a outros homens) da Doutrina da Virtude. Como podemos inserir o amor nesta obra que não pretende determinar deveres a partir de um sentimentos patológicos, estéticos ou morais? Um outro problema que aqui ocorre é a possibilidade de uma construção a priori que contenha uma teoria da virtude, pois virtude é usualmente definida como algo que pertence ao domínio dos costumes. Aristóteles define virtude como uma héxis proairetiké, ou seja, um costume de agir deliberadamente. Se aceitarmos esta definição, uma teoria das virtudes pertenceria ao domínio prático-técnico. Mas Kant parece procurar introduzir uma metafísica dos costumes no domínio prático puro. É este realmente o caso?

Para responder a esta questão, será necessário compreender corretamente a concepção de uma metafísica dos costumes como aquela doutrina que contem em si princípios de aplicação da lei universal à "natureza particular dos seres humanos, à qual é conhecida somente pela experiência". (MS, 6:217) O outro lado da metafísica dos costumes é uma antropologia prática, a qual refere-se às condições humanas da aceitação ou rejeição da lei moral. Isso não significa, alerta Kant, "que uma metafísica dos costumes deve ser baseada numa antropologia", mas "que deve ser aplicada a esta.". (MS, 6:217) Na Fundamentação, Kant distinguia nitidamente entre uma metafísica dos costumes, que nos dá "as leis de acordo com as quais tudo deve acontecer" e uma antropologia prática, que dá "as leis de acordo com a quais tudo acontece". (G, 4:388) Doze anos mais tarde, porém, a idéia de uma metafísica dos costumes inclui em si um certo conhecimento empírico sobre a natureza humana, sem a qual não seria possível determinar um sistema concreto de deveres para os seres humanos. Allen Wood analisa corretamente esse deslocamento na concepção de metafísica dos costumes que ocorre entre 1785 e 1797, no que toca a uma rígida separação entre a parte empírica e pura da ética:

"Ao deslocar o conteúdo de uma metafísica dos costumes em direção ao empírico, Kant não está abandonando ou modificando sua tese fundamental de que o princípio fundamental da moralidade é totalmente a priori e não toma nada da natureza empírica dos seres humanos. Ele está apenas restringindo sua tese anterior de que uma metafísica dos costumes refere-se apenas ‘à idéia e aos princípios de uma vontade pura possível e não as ações e às condições do querer humano em geral’. Em outras palavras, Kant não considera mais que a metafísica dos costumes é composta apenas por um conjunto de princípios morais puros. (...) Ela é, ao contrário, um sistema de deveres que resultam quando o princípio moral puro é aplicado à natureza empírica do homem."5

A aplicação dos princípios morais puros à natureza empírica do homem nos fornece as virtudes, definidas como fins que são, ao mesmo tempo, deveres. Kant enumera dois fins que se constituem em deveres: a própria perfeição e a felicidade alheia. Estes dois objetivos nos levam a dois diferentes tipos de deveres: os deveres do homem relacionados a ele mesmo, deveres do homem relacionados a outrem, entre os quais encontramos o dever de amar, que consiste em promover a felicidade de outrem. Todavia, este amor virtuoso não é um amor relacionado ao prazer da posse do outro, mas uma máxima de fazer o bem:

"Não entendemos aqui o amor como sentimento (Gefühl-ästhetisch), isto é, como um prazer (Lust) experimentado pela perfeição de outros homens, não o compreendemos como amor de satisfação (Liebe des Wohlgefallens) (porque os outros não podem nos obrigar a ter sentimentos), mas deve ser concebido como uma máxima de benevolência (Wohlwollen) (enquanto prática), que tem como conseqüência a beneficência (Wohltun). (DV, 6:449) (grifo meu).

Kant refere-se, não ao amor de deleite (amor complacentiae), mas ao amor de benevolência (Wohlwollen, amor benevolentiae), visto que este poderia ser exigido como dever, mas não o primeiro, pois seria contraditório que alguém fosse obrigado a sentir prazer. O amor de benevolência, exatamente por não ser direto, admite algo próximo ao cultivo aristotélico, disposição que pode ser despertada pelo hábito. Kant escreve:

"Desta forma, o dito ‘ame o seu próximo como você mesmo’, não significa que se deve imediatamente amá-los e, posteriormente, devido a este amor, fazer o bem para ele. Significa, ao contrário, que voce deve fazer o bem aos seres humanos, e sua beneficência produzirá amor com respeito a eles (como uma aptidão à inclinação em geral)." (DV, 6:402)

Por esta razão, Kant procura distinguir a virtude do amor do amor que nos dá prazer ou satisfação, ainda que seja um prazer pela perfeição de outrem. Além disso, não podemos ter um dever de amar, se amor fosse entendido como um sentimento ou prazer, porque o dever não nos pode constranger a ter sentimentos, nem pode a lei moral nos obrigar a amar alguém.

O dever de amar deve ser entendido como uma máxima de benevolência, que consiste, não em querer o bem dos outros sem contribuir praticamente para isso, mas numa benevolência prática, ou beneficência, que consiste a propor-se como fim o bem do outro. A máxima de benevolência engendrará, por sua vez, os deveres de beneficência (dever de ajudar os necessitados a encontrar sua felicidade) e de reconhecimento (dever de honrar uma pessoa devido a um favor que recebeu) e de simpatia (Teilnehmung). Kant aceita que participar da dor ou da alegria de outrem é, sem dúvida, um sentimento, recaindo, aparentemente num fundamento de determinação prático material para a moralidade. A introdução do sentimento de simpatia deve ser, todavia, interpretado, não como um fundamento de determinação da ação, mas como um sentimento natural que nós devemos utilizar como meio para tornar efetiva a benevolência. Será nosso dever, portanto, cultivar em nós os sentimentos de simpatia, ainda que a lei moral não se ancore nesses, mas na pura razão.

Na Doutrina da Virtude, Kant nos apresenta uma teoria moral mais complexa sobre o papel dos sentimentos relacionados à simpatia. Ainda que a simpatia possa ser o móbil de uma ação moral (ou um incitamento ao amor prático), isso não significa que todo compartilhar de sentimentos é positivo. Podemos vê-lo na divisão da humanidade em humanitas practica, "a capacidade e a vontade de compartilhar os sentimentos dos outros", e humanitas aesthetica, "a receptividade, dada pela própria natureza, de sentir a alegria e a tristeza em comum com outros". (DV, 6:456) A primeira é desejável, mas não a segunda, porque a primeira é livre e depende da vontade, enquanto a segunda espalha-se naturalmente entre as pessoas "como a susceptibilidade as calor ou a doenças contagiosas". (DV, 6:457)

A razão do elogio à humanitas practica e crítica à humanitas aesthetica é que a compaixão, quando não acompanhada por uma ação prática, é uma forma de aumentar o mal no mundo. Se um amigo está sofrendo e eu não posso fazer nada para diminuir sua dor, não há tal dever de ser simpático aos seus sentimentos, porque isso apenas me faria aumentar o sofrimento e os males do mundo.

Kant sem dúvida reconhece a possibilidade de que sentimentos de simpatia possam fazer o papel de incentivo moral, quando a representação do dever por si só não for suficiente, "visto que simpatia é ainda um dos impulsos que a natureza em nós implantou para fazer o que a representação do dever não poderia não realizar por si só" (DV, 6:458). A simpatia soma-se ao móbil moral (respeito) para realizar a ação moral. Se a representação da lei não for suficiente para realizá-lo, é um dever promover nossos bons sentimentos naturais para adicionar um móbil natural a um móbil moral racional. Indo, portanto, além do espírito da Fundamentação, Kant admite que a simpatia, devidamente cultivada para responder às situações corretas, possa ser o móbil de uma ação moral que é realizada pelo motivo do dever. Neste caso, o dever deve ser compreendido em dois níveis: primeiro, um dever de realizar a ação moral; segundo, um dever derivado de utilizar sentimentos naturais quando a consideração sobre a correção da ação não é suficiente para acionar a ação.

O papel que Kant atribui à simpatia é, portanto, de uma sentimento moral provisório, o qual pode auxiliar na realização de boas ações, quando o sentimento de respeito pela lei moral ainda não se encontra suficientemente desenvolvido. Conforme analisa Nancy Sherman, esta é uma moralidade faute de mieux, ou seja, um tipo de moralidade provisória: " é uma moralidade de tipo inferior, uma moralidade infantil que será finalmente substituída no progresso do indivíduo".6 Nancy Sherman, todavia, admite que sentimentos tais como simpatia, compaixão e amor possuem um papel perceptivo em Kant, ou seja, que "nós ainda necessitamos das emoções patológicas para decidir onde e quando esses fins [da lei moral e de suas esferas da justiça e da virtude] são apropriados."7

Sherman parece estar correta e fiel aos textos quando examina o papel provisório de sentimentos tais como compaixão, amor, simpatia, visto que Kant realmente admite uma função para estes na realização das ações morais, quando o mero respeito pela lei não for ainda forte o suficiente para desencadear a ação. O papel perceptivo, contudo, é mais duvidoso, visto que a idéia de que emoções são cegas parece permanecer uma constante na obra kantiana, sem variações da Fundamentação à Doutrina da Virtude. A crítica da simpatia como móbil de uma ação moral do filantropo residia, não na condenação da simpatia enquanto tal, mas na idéia de que ela, por si mesma, não poderia dizer qual a ação moralmente relevante. Um bom exemplo dado pela literatura contemporânea é fornecido por Barbara Herman: ouvimos alguém gritar por ajuda para carregar algo pesado, o ajudamos e, posteriormente, viemos a saber que se tratava de um ladrão roubando uma escultura de um museu de arte.

Para que a simpatia possa fazer o papel de móbil moral, ela dever ser treinada e controlada pela vontade, a qual informará também quando esta deve ser ‘ativada’. E essa é a razão pela qual humanidade é dividida em humanidade livre e não-livre. A humanidade livre (humanitas practica) é a capacidade e a vontade de usar os sentimentos de simpatia para promover a felicidade de outrem, o que inclui um procedimento de decidir em que casos eu devo "acionar" esses sentimentos. O estóico, que decide que não acionará seus sentimentos de simpatia, age desta forma, porque não há nada que possa fazer para ajudar seu amigo; todavia, se houvesse algo prático que pudesse ser feito, ele ativaria seus sentimentos de compaixão, visto que estes teriam como conseqüência uma real ação beneficente. Conseqüentemente, nesta nova visão da simpatia apresentada na Doutrina da Virtude, esta é passível de controle pela razão, o que discorda da abordagem apresentada na Fundamentação, que é confirmada pelas anotações de Mrongovius das Lições de Antropologia, ministradas em 84/85. Segundo tais anotações, uma das razões que faz a simpatia ser inapropriada como móbil é sua inscrição sensível: "se a [simpatia com a alegria e dor] torna-se afeto, o ser humano torna-se infeliz. O ser humano torna-se, através da simpatia, apenas sensível e não ajuda os outros". (AntMrongovius, 25:1348)

A fim de que a simpatia seja efetiva e torne-se beneficência devemos ir a hospitais e outros lugares, onde vejamos o sofrimento alheio; é um dever, nos diz Kant, "não evitar lugares onde se encontram os pobres que passam necessidades, mas procurá-los (DV, 6: 457). Este habitus não visa desenvolver personalidades irrefletidamente compassivas, mas o treinamento dos nossos sentimentos de compaixão e simpatia para que possam ser utilizados posteriormente como meios de fazer o bem concretamente. Contudo, os sentimentos de amor, simpatia e compaixão são, em si mesmos, cegos moralmente, dependendo de princípios morais para serem acionados na situação correta.

3.Desejo, afeto e paixão: as modalidades antropológicas do amor.

Na Antropologia do Ponto de Vista Pragmático (1798) Kant apresenta-nos sua divisão dos apetites ou inclinações em geral como pertencentes ao sentimento de prazer e desprazer e faculdade de desejar. À faculdade de desejar pertenceriam os instintos, propensões, inclinações e paixões (Ant, 7:265); à faculdade do sentimento de prazer ou desprazer, pertenceriam os afetos.

Um primeiro e primitivo nível do amor poderia ser atribuído ao instinto, segunda divisão da faculdade de desejar. O instinto de acasalamento seria comum aos seres humanos e animais e desejo sexual em si não possuiria nada relacionado à moralidade ou promoção da dignidade. Na Doutrina do Direito, Kant define a união sexual como um uso que um ser humano faz dos órgãos e capacidades sexuais do outro; "neste ato", afirma, "um ser humano faz de si uma coisa o que entra em conflito com o direito de humanidade de sua pessoa". (MS, 6:278) A única forma de restituir sua personalidade é, ao ser adquirido como uma coisa, possuir o outro igualmente como coisa. A diferença entre a prostituição e o casamento, conforme nos explica Allen Wood, consiste no fato de que o casamento preserva o direito de humanidade apenas por adicionar o aspecto contratual, que dá o direito ao usado de usar o outro igualmente: "No casamento, o outro tem o direito de usar seus órgão sexuais, mas você tem também o direito de usar os dele e, mais do que isso, você possui a exclusiva posse deste uso (um direito nunca usufruído pelas prostitutas ou seus clientes). 8

A este primeiro nível instintivo e natural do amor, segue-se um segundo, denominado de afeto, um sentimento tempestuoso e passageiro, o qual torna difícil a reflexão e deliberação sobre ação. O amor-afeto deve ser diferenciado do amor-paixão,9 visto que a paixão, ainda que violenta, pode coexistir com a razão e "é deliberativa a fim de atingir sua finalidade" (Ant, 7:252). Kant explica metaforicamente as diferenças entre afeto e paixão, as quais valem igualmente para outras emoções:

"O afeto procede como a água que rebenta uma barreira, a paixão como um rio que cava cada vez mais fundo no seu leito. O afeto age sobre a saúde como um ataque de apoplexia, paixão como uma consumação ou atrofia. O afeto é como um intoxicante que nos faz dormir, ainda que seja seguido, no outro dia, por uma dor de cabeça, mas a paixão deve ser vista como resultado da ingestão de veneno..." (Ant, 7:252).

Pode-se ver aqui que o amor-afeto difere do amor paixão quanto à intensidade, duração e grau de periculosidade. O primeiro é mais intenso, porém dura menos e é menos perigoso do que o segundo. Por esta razão, Kant afirma que, onde há muito afeto, há pouca paixão, visto que emoções tempestuosas esgotam-se rapidamente, o que não permite a fria avaliação da situação vivida e a deliberação sobre meios para atingir o fim: "O afeto é sincero e não se deixa dissimular, a paixão geralmente se oculta" (Ant, 7:253). Enquanto o afeto é uma genuína explosão de emoções, a paixão pode, por sua vez, coexistir com a dissimulação. A inocência do amor-afeto comparado com o ardil do amor-paixão pode ser constatado na seguinte situação:

"Um apaixonado sério é acanhado, canhestro e pouco à vontade na presença da amada. Aquele, todavia, que, tendo certo talento, apenas se faz de apaixonado, pode desempenhar seu papel tão naturalmente que ele pega a pobre [moça] enganada em sua armadilha; isso porque seu coração está despreocupado, sua mente esta límpida e ele está no pleno comando do livre uso da sua destreza e força para imitar a aparência do apaixonado muito naturalmente." (Ant, 6:265)

O amor afeto assemelha-se mais ao apaixonar-se ou enamorar-se de alguém, denotando um amor romântico, incontrolável quanto as suas manifestações e cego em relação aos seus objetos: "Aquele que ama (liebt) pode manter a sua visão intacta, porém aquele que se apaixona (verliebt) é cego em relação aos defeitos do objeto amado, ainda que o último recobrará sua visão uma semana depois do casamento" (Ant, 7:253). A emoção de uma pessoa apaixonada assemelha-se, portanto, aos afetos kantianos. O termo paixão é reservado para atitudes mais deliberativas, podendo coexistir com a mais ardilosa dissimulação, desde que isso, como no exemplo acima, possa contribuir para obter um determinado objeto de desejo. Por essa razão, Kant afirma que as paixões não são como os afetos; estes, ao menos, convivem com uma boa intenção de aperfeiçoamento, aquelas rejeitam qualquer tentativa de melhora. Tal é o caso quando uma pessoa age conforme um forte afeto, o que caracteriza apenas uma fraqueza da vontade, enquanto a paixão pressupõe uma máxima de agir de acordo com um princípio prescrito segundo sua inclinação. A paixão do amor, todavia, possui uma vantagem frente às outras paixões, tais como ambição, vontade de poder e cobiça, as quais são doenças da razão porque possuem um caráter permanente, já que, segundo Kant, "não são jamais satisfeitas" (Ant, 7:266). A paixão do amor, ao contrário, cessa quando o desejo, ou o amor físico, é satisfeito. Se é possível enlouquecer devido à obsessão das outras paixões, o ditado "enlouqueceu de amor" contém algo de inverossímil, pois quem enlouquece devido à recusa do ser amado, já estava anteriormente perturbado a ponto de ter escolhido a pessoa errada como objeto de seus afeto e desejo. Tal era o caso, comum na época de Kant, de pessoas que se apaixonavam por outras de nível social superior: "apaixonar-se por uma pessoa de uma classe social mais alta e esperar desta a loucura de um casamento não é a causa, mas a conseqüência de uma prévia perturbação". (Ant, 7:217)

Ainda que mesmo as formas mais violentas de amor não sejam tão prejudiciais à moralidade quanto às paixões da ambição, cobiça e vontade de poder, o amor, quando não ligado à benevolência e simpatia, é um fenômeno no mínimo distinto da moralidade, visto que implica um sentimento entre pessoas desiguais. Ou, como escreve Kant numa das Reflexionen agrupadas no Nachlass sobre Antropologia : "Nós precisamos mais ser honrados do que amados, mas nós também precisamos algo para amar com que não estejamos em rivalidade. Então amamos pássaros, cachorros ou uma pessoa jovem, inconstante e querida." (R 1471, 15:649)

Ainda que, aparentemente, essa afirmação denuncie um preconceito da época relativamente à inferioridade feminina, numa outra anotação, Kant afirmaria que "Homens e mulheres possuem uma recíproca superioridade um em relação ao outro". (R 1100, 15:490) Ainda que a superioridade de cada um seja relativa a aspectos diferentes, a recíproca desigualdade é o que estimula e promove o amor como afeto ou paixão. Somada à dificuldade de controle pela razão, o fato destes sentimentos necessitarem de uma idéia de desigualdade indica que seu locus é estranho à moralidade, a qual consiste em considerar o outro como igual e promover sua felicidade.

4.Conclusão:

As várias figuras do amor assumem uma posição diversa na filosofia kantiana, algumas apresentando valor moral, outras consideradas opostas à realização dos propósitos morais. O amor de benevolência pode ser considerado um princípio prático; um dever de fazer o bem e ajudar o próximo, a partir do qual o afeto pelos outros pode, inclusive, ser despertado. Isso ficou claro na análise do texto kantiano, onde nos é dito que não é necessário amar sensivelmente e, devido a isso, fazer o bem, mas fazer o bem e, através deste hábito caridoso, despertar sentimentos de simpatia pelo seu humano. O sentimento de simpatia pode, por sua vez, também ser utilizado pelo agente para impulsionar ações morais nas quais o respeito pela lei moral não era móbil suficiente. Tem-se, neste, caso, não uma negação do exposto na Fundamentação, na qual o valor moral de uma ação residia no fato do móbil desta ter sido o respeito, mas uma moral provisória que, empiricamente, pode e deve utilizar esses sentimentos de prazer e desprazer pela sorte alheia para fomentar boas ações, até a nossa razão ter amadurecido o suficiente para não mais precisar delas.

Relativamente aos afetos e paixões, embora ambos sejam criticadas como doenças da razão, os efeitos negativos do amor-afeto são menores do que a persistência e inversão de máximas na paixão. Contudo, visto que a paixão do amor está ligada ao desejo físico que busca sua realização, ela não tem a persistência das outras paixões culturais, já que, uma vez atingido seu objetivo, ela se extingue. Ainda assim, tais sentimentos não se constituem em auxiliarem sensíveis da ação moral, visto que o amor-afeto ou amor-paixão são despertados a partir de uma idéia de desigualdade estranha à moralidade.

Por fim, é importante frisar que a tematização de sentimentos, inclinações e paixões na Doutrina da Virtude e Antropologia não contradiz o espírito da Fundamentação, visto que a ação com verdadeiro valor moral ainda é aquela cujo móbil é o respeito à lei, o que não nos impede de utilizar provisoriamente nossa parte sensível para os propósitos da razão.

-Herman, B. The Practice of Moral Judgment, Cambridge, Cambridge Univeristy Press, 1993, p. 1.
-Korsgaard, C. Creating the Kingdom of Ends, Cambridge, Cambridge university Press, p.59
-Wood, A, Kant’s Ethical Thought, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, p. 196.


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