DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA - 20 DE NOVEMBRO - HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO

No início de seu mandato, o presidente Lula aprovou a inclusão do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar e tornou obrigatório o ensino de história da África nas escolas públicas e particulares do país. Embora a decisão tenha sido comemorada, alguns pesquisadores ressaltam que existem obstáculos a serem ultrapassados para que a proposta se transforme em realidade. "Em geral, a história dada segue o livro didático e ele é insuficiente para dar conta de uma forma mais ampla e crítica de toda a história", ressalta Vasconcelos. Essa avaliação da historiadora é confirmada pela professora de história Ivanir Maia, da rede estadual paulista. "A maioria dos professores se orienta pelo livro didático para trabalhar os conteúdos em sala de aula. Nos livros de história, por exemplo, o negro aparece basicamente em dois momentos: ao falar de abolição da escravatura e do apartheid".

 Zumbi dos Palmares

O 20 de novembro trata da data do assassinato de Zumbi, em 1665, o mais importante líder dos quilombos de Palmares, que representou a maior e mais importante comunidade de escravos fugidos nas Américas, com uma população estimada de mais 30 mil. Em várias sociedades escravistas nas Américas existiram fugas de escravos e formação de comunidades como os quilombos. Na Venezuela, foram chamados de cumbes, na Colômbia de palanques e de marrons nos EUA e Caribe. Palmares durou cerca de 140 anos: as primeiras evidências de Palmares são de 1585 e há informações de escravos fugidos na Serra da Barriga até 1740, ou seja bem depois do assassinato de Zumbi. Embora tenham existido tentativas de tratados de paz os acordos fracassaram e prevaleceu o furor destruidor do poder colonial contra Palmares.

Proposta antiga

Há 32 anos, o poeta gaúcho Oliveira Silveira sugeria ao seu grupo que o 20 de novembro fosse comemorado como o "Dia Nacional da Consciência Negra", pois era mais significativo para a comunidade negra brasileira do que o 13 de maio.

"Treze de maio traição, liberdade sem asas e fome sem pão", assim definia Silveira o "Dia da Abolição da Escravatura" em um de seus poemas. Em 1971 o 20 de novembro foi celebrado pela primeira vez. A idéia se espalhou por outros movimentos sociais de luta contra a discriminação racial e, no final dos anos 1970, já aparecia como proposta nacional do Movimento Negro Unificado.

A diversidade de formas de celebração do 20 de novembro permite ter uma dimensão de como essa data tem propiciado congregar os mais diferentes grupos sociais. "Os adeptos das diferentes religiões manifestam-se segundo a leitura de sua cultura, para dali tirar elementos de rejeição à situação em que se encontra grande parte da população afro-descendente. Os acadêmicos e os militantes celebram através dos instrumentos clássicos de divulgação de idéias: simpósios, palestras, congressos e encontros; ou ainda a partir de feiras de artesanatos, livros, ou outras modalidades de expressão cultural.

Luta por reparação

Um movimento social que retomou sua expressividade no cenário político contemporâneo foi o movimento negro. Mas definir a sua configuração na atualidade não é tarefa fácil. Dois processos políticos vêm sendo destacados pelos ativistas do movimento como marcos de sua história recente: a preparação para a participação brasileira na Conferência de Durban, realizada na África do Sul, em 2001, e o projeto de lei do senador Paulo Paim (PT-RS), o Estatuto da Igualdade Racial.

A partir desses dois eventos significativos seria possível definir alguns contornos do movimento negro nos anos mais recentes. E o que se destaca é a luta pela reparação. Se tal noção se constitui numa demanda internacionalizada do movimento negro (presente em vários países africanos e nos Estados Unidos), no Brasil, a reparação é pensada como combate às desigualdades entre brancos e negros (desigualdades raciais). E a responsabilidade histórica por este combate caberia ao Estado brasileiro. Sendo assim, a modalidade de política eleita como reivindicação principal do movimento negro, na atualidade, são as políticas públicas de ação afirmativa. E, por causa delas, o diálogo entre o movimento negro e o Estado é cada vez mais intenso.

O estatuto da Igualdade Racial

O Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), está em tramitação no Congresso Nacional desde 1998. Existe grande expectativa de que ele seja aprovado ainda neste novembro, mês da consciência racial.

O presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, em encontro recente com representantes de várias entidades do movimento negro, teria se comprometido a colocar o projeto na pauta do plenário da Câmara antes do dia 20 de novembro. A aprovação do Estatuto vem concentrando os esforços de boa parte da militância negra que o considera um marco político por condensar muitas reivindicações históricas do movimento.

Segundo Edson Lopes Cardoso, assessor para relações raciais do senador Paulo Paim e ativista histórico fundador do MNU (Movimento Negro Unificado): "Se você considerar o movimento negro nos últimos trinta anos, é muito difícil que alguma coisa levantada pelo movimento não esteja presente no projeto. Houve uma discussão com o movimento social. Os pareceristas que avaliaram o projeto durante todos esses anos de tramitação eram todos do movimento negro. Há no projeto uma média razoável de atendimento de reivindicações do movimento negro".

Consciência Negra - O Projeto de Lei

O projeto de lei é amplo e prevê, em seus capítulos, questões como pesquisa, formas de prevenção e combate de doenças prevalecentes na população negra (tais como a anemia falciforme); direito à liberdade religiosa e de culto, especialmente no que diz respeito às chamadas religiões afro-brasileiras como o candomblé; reconhecimento e titulação das terras remanescentes de quilombos; inclusão no mercado de trabalho, através da contratação preferencial de profissionais negros, tanto na administração pública quanto nas empresas privadas.

O sistema que prevê cotas para negros compreende os concursos públicos e instituições de ensino superior (públicas e privadas), a apresentação de candidaturas pelos partidos políticos e a participação de artistas e profissionais negros na televisão, publicidade e cinema.

Cardoso faz questão de enfatizar que o Estatuto da Igualdade Racial, não se resume, assim, ao sistema de cotas: "O projeto tem duas diretrizes políticas fundamentais que são uma conquista e sinalizam a maturidade do movimento negro. Primeiro, muitas pessoas pensam que o projeto só tem cotas. O sistema de cotas, na verdade, é parte do Estatuto.

O Estatuto tem uma orientação no sentido de que todas as políticas de desenvolvimento econômico e social devem conter a dimensão de superação das desigualdades raciais. É uma orientação para se redefinir as políticas universalistas. Ele também tem como diretriz, portanto, as ações afirmativas e, dentro delas, uma medida especial que é o sistema de cotas. Esta distinção é importante para não reduzir a amplitude do Estatuto".

Pode-se observar que o Estatuto da Igualdade Racial dispõe sobre questões algumas das quais já previstas em outras legislações tais como a própria Constituição de 1988. A novidade deste projeto de lei, portanto, não residiria naquilo que nele se reivindica como direito mas na possibilidade da garantia desses direitos serem postos em prática.

"A mobilização em torno do Estatuto é importante não apenas para aprová-lo mas para fazer com que os direitos nele previstos, caso venham a ser formalmente assegurados, possam ser efetivamente usufruídos pela população negra. Às vezes, um movimento se mobiliza para conquistar uma legislação mas não tem força para levar àquela legislação à prática. Isso é muito comum no movimento social, e mais comum ainda conosco do movimento negro, por razões do racismo estrutural que compõe a história do Brasil", afirmou Cardoso ao definir as expectativas que rondam a aprovação do projeto de lei.

Conferência de Durban - Participação brasileira

Em julho de 2001, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foi realizada a Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância. Tal evento encerrou o processo de preparação da participação brasileira na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, organizada pelas Nações Unidas, em Durban, África do Sul, em setembro de 2001.

Embora as políticas de ação afirmativa já estivessem sendo discutidas por várias entidades do movimento negro e mesmo pelo governo federal (que criou, em 1995, um Grupo de Trabalho Interministerial para debater esta modalidade de política pública), a Conferência de Durban vem sendo descrita pelos ativistas como o momento no qual o movimento negro se aglutinou em torno desta reivindicação: "Durban sinaliza um consenso sobre a necessidade de se implantar ações afirmativas no Brasil", afirma Deise Benedito, coordenadora de articulação política e de direitos humanos da organização não-governamental Fala Preta!.

A Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância, segundo os dados fornecidos pelos organizadores, contabilizou a participação de 1500 delegados e de 500 ouvintes cadastrados. Os membros das vinte e sete delegações (cada uma delas eleita em um estado brasileiro) se subdividiram em grupos temáticos e se reuniram para apresentar as propostas elaboradas nas pré-conferências estaduais. O que se pretendia era que essas propostas fossem votadas e sistematizadas para serem encaminhadas para o Comitê Nacional - que as incorporaria ao documento a ser levado para a Conferência Mundial da ONU.

"A mobilização para a Conferência no Rio de Janeiro foi nacional. Não existiu estado em que não houvesse algum evento de preparação para a Conferência. Eu me dediquei à mobilização, viajando por quase todo o Brasil. Defendi que o mais importante da participação brasileira na Conferência Mundial de Durban seria o processo de mobilização nacional sobre a temática do racismo", afirmou Ivair Augusto Alves dos Santos, assessor da secretaria de direitos humanos do Ministério da Justiça e, na época, membro do Comitê Executivo responsável pela organização da Conferência Nacional.

Mulheres negras se destacaram

Segundo Ivair dos Santos, o processo de eleição das delegações que iriam participar da Conferência Nacional refletiu a situação do movimento negro em cada estado brasileiro. Na região norte, por exemplo, os militantes tiveram até mesmo dificuldades de transporte e locomoção para comparecer às reuniões.

Foi preciso, então, mobilizar o apoio dos governos estaduais e municipais, nestes casos, embora Ivair dos Santos faça questão de ressaltar que "o objetivo sempre foi o de 'empoderar'[sic] a militância e respeitar sua autonomia para se organizar. Em muitos lugares era a primeira vez que as autoridades locais reconheciam a existência do movimento negro".

Ao longo dessas reuniões que constituíram a preparação brasileira para a Conferência de Durban, lideranças foram sedimentadas e quem se destacou nesse processo, segundo Ivair dos Santos, foram as mulheres negras. "Elas tinham experiência de participação em eventos internacionais e estavam bastante mobilizadas a partir de suas organizações não-governamentais". Simbolizando esta proeminência política do movimento de mulheres negras havia Benedita da Silva, então vice-governadora do estado do Rio de Janeiro, eleita presidenta da Conferência Nacional contra o Racismo e a Intolerância.

Pode-se afirmar, então, tomando-se como amostra a Conferência Nacional, que os sujeitos políticos que mais se destacam no movimento negro contemporâneo são as mulheres negras e suas organizações não-governamentais? Para Maria Palmira da Silva é preciso ter cautela na tentativa de se definir quem se destaca, hoje, no movimento negro: "É difícil fazer esta distinção. Atualmente os movimentos sociais funcionam como redes que se conectam e desconectam, dependendo do cenário político. Isto significa dizer que eles são complementares. Do meu ponto de vista, não é possível fazer esta classificação".

Reparação - Responsabilidade do estado

Tanto na Conferência Nacional preparatória para Durban quanto nas audiências públicas realizadas para instruir o Estatuto da Igualdade Racial, subjaz um discurso baseado na idéia de reparação. Esse discurso seleciona no passado a escravidão e a abolição para afirmar a responsabilidade histórica do Estado brasileiro no combate às desigualdades entre brancos e negros.

"Você tem um Estado que se constituiu em 1824 com um desafio: vai ter escravo ou não vai ter escravo? E ele opta por ter. Porque houve quem sugerisse, nessa primeira Constituinte, que se instituísse um Estado brasileiro sem escravos. A elite brasileira faz a opção de assentar o Estado sobre as desigualdades raciais" afirma Edson Cardoso ao caracterizar aquilo que seria o racismo estrutural da sociedade brasileira.

Para ele, a escravidão era algo tão arraigado na mentalidade da elite brasileira que os fazendeiros escravocratas derrubaram a monarquia (que assinou a abolição da escravatura) e aderiram a um conceito de república que excluía os negros. "A república, então, não está mais assentada no escravismo, mas sim nas desigualdades raciais.

O que é um absurdo diante dos ideais republicanos, diante do conceito do que seja uma república porque a existência das desigualdades raciais negam a sua própria essência. A permanência das desigualdades raciais no Brasil abre brechas para se questionar a efetividade dos valores e do próprio regime democrático no país já que democracia e racismo são incompatíveis", completa Cardoso.

Deise Benedito, da organização não-governamental Fala Preta!, lembra que a reparação também passa pela questão da memória: "resgatar a memória é importante porque informação é conhecimento e obter conhecimento também é uma forma de obtenção de poder." Seria necessário, então, promover a recuperação da dignidade dos "antepassados africanos": "embora o movimento negro tenha conseguido resgatar a memória de Zumbi e do quilombo de Palmares, praticamente não há monumentos dedicados à história da população negra e seus antepassados.

Existe sim estátua para [o bandeirante] Borba Gato na cidade de São Paulo, bem como 'rodovia dos Bandeirantes'", o que seria de uma violência inominável para Deise Benedito, já que "historicamente os bandeirantes foram os responsáveis por várias atrocidades contra a população negra no Brasil inclusive a própria destruição de Palmares".

O negro no mercado de trabalho

O negro no mercado de trabalho
Pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos (Dieese) mostram uma realidade mais precária enfrentada pelos negros no mercado de trabalho, em comparação com a enfrentada pelos não-negros, quando se consideram dados como as taxas de desemprego, a presença nos diferentes postos de trabalho e os valores dos rendimentos, entre outros.

"O aspecto mais perverso da discriminação no espaço de trabalho se dá nos processos de promoção ou mobilidade para cargos de chefia, liderança ou comando, que têm maiores responsabilidades, visibilidade e remuneração", afirma Mércia Consolação Silva, socióloga e consultora do Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdade (Ceert).

De fato, os dados do Dieese para a proporção de assalariados negros e não-negros em ocupações de direção e chefia mostram níveis de desigualdade de oportunidades, além de variações regionais, quando se comparam os resultados para as seis regiões metropolitanas pesquisadas: Belo Horizonte, Distrito Federal, Porto Alegre, Recife, Salvador e São Paulo.

O acesso ao emprego

Enquanto, por exemplo, na região de Salvador, 10,3% dos negros (pretos e pardos) ocupam cargos de chefia e a porcentagem entre não-negros (brancos e amarelos) é de 29,6%, na região metropolitana de São Paulo, essas proporções são de 4,4% e 15,7%, respectivamente (dados de 2002, apresentados no Boletim Dieese - Novembro de 2002). Para contextualizar, é importante notar que a presença da população negra é maior em Salvador (81,8%) do que em São Paulo (33,0%) (dados do Mapa da população negra no mercado de trabalho no Brasil, encomendado ao Dieese).

Entre as principais discriminações sofridas pelos negros no mercado de trabalho, Silva aponta ainda o acesso ao emprego, uma vez que muitas empresas com bons salários e benefícios não contratam negros ou, quando o fazem, são para os postos menos qualificados e com menores remunerações. Além disso, segundo a socióloga, setores como o financeiro e o químico são mais discriminatórios que outros, entre eles o de couro, de alimentação e o metalúrgico.

"Mas é importante notar que esses setores são caracterizados por serem menos 'avançados' tecnologicamente, exigindo ainda um trabalhor com habilidades manuais ou com trabalhos que exigem 'menor capacitação' ", acrescenta. "Quanto mais 'nobre' o trabalho, menor a representação de negros e negras", concorda Neide Aparecida Fonseca, presidente do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial.

Discriminação no ambiente de trabalho

Segundo boletim do Dieese, considerando diferentes ramos de atividade, a proporção de pretos e pardos ocupados é maior nos ramos agrícola, construção civil e prestação de serviços, enquanto os brancos estão mais presentes na indústria de transformação, no comércio de mercadorias, na área social e na administração pública.

Quanto à posição ocupada no trabalho, 13,7% dos pretos e 9,1% dos pardos trabalham, por exemplo, em serviços domésticos, enquanto a proporção de brancos na mesma posição é de 6,3%. Por outro lado, em regime estatutário e como empregadores, há mais brancos (7,3% e 5,8%, respectivamente) do que pretos (6,1% e 1,3%) e pardos (5,3% e 2,3%) (dados de 2001, apresentados no Boletim Dieese - Novembro de 2002).
Tabela 1 - População ocupada, segundo ramo
de atividade, por cor (em %)

Quanto à discriminação no ambiente de trabalho, de acordo com a socióloga, as formas mais recorrentes e cotidianas são indiretas e institucionais (e não diretas e individuais). Exemplo delas seriam a ausência de um programa que valorize a diversidade e a exclusão dos trabalhadores negros em processos de treinamento e capacitação, o que é, posteriormente, usado como forma de avaliação para promoções ou demissões.

Além disso, ela conta que "as fotos e outros instrumentos promocionais da empresa não exibem os negros, causando uma não identificação desses funcionários com o ambiente ou grupo de trabalhadores da empresa". Segundo a presidente do Inspir, os trabalhadores negros muitas vezes não têm consciência da discriminação que sofrem.

Direitos iguais para todos

Ainda de acordo com Fonseca, muitos trabalhadores conhecem os procedimentos a seguir, quando têm consciência que estão sendo discriminados. No entanto, os departamentos jurídicos dos sindicatos ainda estão pouco preparados para lidar com o tema. Os trabalhadores sabem que a batalha judicial é longa e que o empregador tentará descaracterizar os fatos como discriminação racial ou ainda acreditam que a empresa tentará provar a incapacidade do funcionário, no caso de demissões, ou que a discriminação é individual e não institucional. Segundo Gilcéria Oliveira, advogada, que durante a ditadura militar foi presidente da extinta Associação Cultural do Negro, entidade fundada pelo poeta e teatrólogo negro Solano Trindade, o melhor é procurar uma entidade de defesa dos direitos humanos, como o departamento da Ordem dos Advogados do Brasil, que atua na área.

Nesse sentido, de acordo com a consultora do Ceert, a cada dia mais negros procuram a Justiça e as delegacias especiais para denunciarem as discriminações que sofrem. "Mas esse número ainda é muito pequeno se olharmos os dados da realidade e observarmos o quanto o trabalhador negro é cotidianamente discriminado no mercado de trabalho", diz a socióloga.

No entanto, segundo a advogada, os direitos dos trabalhadores negros são iguais aos de todos os brasileiros e não existem leis específicas sobre discriminação racial nos locais de trabalho. "Isso porque toda e qualquer discriminação sobre raça, sexo, homossexualismo e outros está proibida no artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos", explica ela.

Por outro lado, em 1965, o governo brasileiro ratificou a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho - OIT e, em 1995, solicitou a cooperação técnica da organização para a implementação dos compromissos assumidos anteriormente, que envolviam formular e aplicar uma política nacional que buscasse a igualdade de oportunidades e tratamento, em matéria de emprego e profissão. Segundo Silva, a convenção ainda não está sendo cumprida pelas empresas, com exceção de algumas multinacionais, que estão começando a implementar programas de diversidade e promoção da igualdade.

De acordo com Oliveira, a discriminação racial no mercado de trabalho tem diminuído ao longo do tempo, porque os negros têm tido mais acesso à escola ou mesmo à universidade. "A falta de escolaridade é crucial para os brasileiros, com perda maior para os negros, que também são pobres", argumenta. Silva, por outro lado, considera que a discriminação racial no mercado de trabalho tem mudado de forma. "O governo já admite que há racismo no Brasil e está se propondo, a partir de muita pressão do movimento negro e de outros grupos organizados, a pensar, criar e promover políticas públicas que possam reverter esse quadro", comenta a socióloga.

Fatores sócio-econômicos

Nas regiões metropolitanas analisadas pelo Dieese, embora haja diferenças de região para região, as taxas de desemprego são maiores entre os negros do que entre os não-negros.

- Em Salvador, por exemplo, onde são encontradas as maiores taxas em ambos os casos, 29,0% dos negros encontram-se desempregados, enquanto a taxa entre não-negros é de 19,9%.

- Em São Paulo, essas taxas são de 23,9% e 16,7%, entre negros e não-negros, respectivamente. Além disso, as mulheres, tanto negras como não-negras, têm taxas de desemprego superiores às médias, em todas as regiões pesquisadas, enquanto as taxas entres os homens, tanto negros como não-negros, são sempre inferiores às médias.

Com relação às condições de vida, os níveis de pobreza e indigência mostram que os pardos e os pretos vivem em condições mais precárias do que os brancos: 48,4% dos pardos são pobres e 22,3%, indigentes; as proporções entre pretos são 42,9% e 18,3%, de pobres e indigentes, respectivamente; enquanto 22,6% dos brancos são pobres e 8,1% são indigentes. É importante ainda notar que, em números absolutos, os pardos pobres (30.041) e indigentes (13.841), somados aos pretos pobres (3.597) e indigentes (1.533), são em maior número do que os brancos pobres (19.008) e indigentes (6.862) (dados de 1999, apresentados no Boletim Dieese - Novembro de 2001).

Famílias - Distribuição por classe de rendimento

Considerando a distribuição das famílias por classes de rendimento médio mensal, as proporções de famílias chefiadas por pretos e pardos que recebem mais de três salários mínimos são de 7,7% e 7,6%, respectivamente, enquanto, entre os brancos, 25,2% estão nessa faixa salarial. Por outro lado, 26,2% das famílias com chefes pretos e 30,4% com chefes pardos recebem menos de meio salário mínimo, sendo a proporção de famílias com chefes brancos nessa situação de 12,7%.

Distribuição das famílias por classe
de rendimento médio mensal familiar per capita,
segundo a cor do chefe (em %)
Brasil - 1999
Classes de Rendimento
Famílias segundo a cor do chefe
Branca
Preta
Parda
Até 1/2 salário mínimo
12,7
26,2
30,4
Mais de 1/2 salário mínimo
20,0
28,6
27,7
Mais de 1 a 3 salários mínimos
37,3
31,1
27,7
Mais 3 a 5 salários mínimos
11,1
4,3
4,4
Mais de 5 salários mínimos
14,1
3,4
3,2
Fonte: IBGE. Síntese de Indicadores Sociais, 2000

Ainda com relação aos aspectos sócio-econômicos, os dados da distribuição dos empregados segundo os direitos sociais e benefícios recebidos mostram que a porcentagem de empregados negros e pardos que recebem vale-transporte, vale-refeição e férias é inferior à de brancos, sendo que a situação se inverte apenas no caso do auxílio-moradia. Por exemplo, enquanto 29,84% dos trabalhadores brancos recebem vale-transporte, a porcentagem no caso de pretos e pardos é de 11,80% (Fonte: Pesquisa sobre padrões de vida 1996 - 1997, Rio de Janeiro: IBGE, 1998.

Fatores educacionais

Considerando diferentes níveis de escolaridade, o valor do rendimento médio por hora no trabalho para pretos e pardos é sempre inferior ao valor para brancos, em cada um dos níveis. Por exemplo, se os anos de estudo variam entre quatro e sete, o valor do rendimento médio é de R$ 1,93 para pretos e pardos e de R$ 2,86 para brancos.

Para um nível de escolaridade mais alto, de 12 anos ou mais, os valores são R$ 11,32 para pretos e pardos e R$ 14,44 no caso de brancos (Fonte: Pesquisa sobre padrões de vida 1996 - 1997, Rio de Janeiro: IBGE, 1998. Portanto, ainda que uma pessoa negra ou parda tenha estudado o mesmo número de anos que uma pessoa branca, seus rendimentos são menores. Além disso, enquanto o número médio de anos de estudo é de 6,7 para a população de cor branca, o número de anos correspondente para pretos é de 4,5 e para pardos, de 4,6 (dados de 1999, apresentados no Boletim Dieese - Novembro de 2001).

Tanto entre negros, como entre não-negros, as taxas de desemprego são mais elevadas entres os trabalhadores que possuem ensino médio incompleto, nas seis regiões pesquisadas pelo Dieese. Em Salvador, para esse grau de escolaridade, a taxa de demsemprego é de 42,1% entre os negros, sendo a maior em comparação com as outras regiões (a taxa entre os não-negros não é apresentada).

Por outro lado, independente do grau de escolaridade, as taxas de desemprego são maiores entre negros do que entre não-negros, com exceção do Distrito Federal, para trabalhadores com curso superior, onde as taxas se igualam. Além disso, em Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador, as taxas de desemprego entre trabalhadores que possuem ensino médio completo e ensino superior são inferiores às taxas entre trabalhadores analfabetos e trabalhadores com ensino fundamental incompleto ou completo.

Taxa de desemprego por cor e escolaridade

A exclusão existente no mundo do trabalho também se dá no sistema educacional. Dos 28.234.039 estudantes do ensino fundamental, 52,0% são brancos, 43,1% são pardos e 4,5%, pretos.

No ensino médio, que tem 3.760.935 alunos, as proporções correspondentes são 65,3%, 30,1% e 3,3%, para brancos, pardos e pretos, respectivamente, e, cursando o ensino superior, existem 1.665.982 estudantes, sendo 78,6% deles brancos, 17,4% de pardos e 1,4% de pretos (Fonte: Anuário Estatístico do Brasil 1992, Rio de Janeiro: IBGE, 1992.

História da escravidão no mundo

No mundo, a história da escravidão é tão antiga quanto a da própria humanidade. Porém a forma mais comum de escravidão registrada historicamente tem origem a partir da relação de forças entre conquistadores e conquistados, com os primeiros impondo a condição servil aos segundos. Povos inteiros eram submetidos à servidão por terem sucumbido ao poder de um determinado conquistador.

O tipo de escravidão que se deu nas Américas, logo após seu descobrimento por Cristóvão Colombo, em 1492, era praticamente inédita, baseada no subjugamento de uma raça, em razão da cor da pele.
Como nos demais países do continente, no Brasil havia os indígenas, que, de início, foram utilizadas para o trabalho, tanto escravo quanto remunerado, por meio de transações de escambo. Porém, após o fortalecimento do lucrativo tráfico negreiro - que garantia grande acumulação de recursos à Metrópole - a mão-de-obra indígena foi abandonada.

Essas populações originárias de nosso continente passaram a ser simplesmente perseguidas e praticamente foram dizimadas.
A chegada de escravos da África teve início já nas primeiras décadas de colonização do Brasil. Um dos registros mais antigos do tráfico de escravos para nosso país data de 1533, no qual Pero de Góis pedia ao rei "17 peças de escravos".

Poucos anos depois, em 1539, o donatário de Pernambuco na recente colônia, Duarte Coelho, solicitou ao rei de Portugal D. João III que fosse concedida permissão para "haver alguns escravos de Guiné (como eram chamados os africanos)". Porém o ciclo de exploração do pau-brasil - o primeiro comercialmente relevante da história do país - foi substancialmente viabilizado por mão-de-obra indígena.

História da escravidão no Brasil - Ciclo da cana de açucar

Foi com o ciclo econômico da cana-de-açúcar que a mão-de-obra negra se consolidou no Brasil, principalmente em Pernambuco e na Bahia. A partir de 1549, intensificou-se o tráfico negreiro para estas regiões, principalmente em razão dessa florescente cultura agrícola. Em 1559, o tráfico foi legalizado por iniciativa de um decreto do rei D. Sebastião, pelo qual ficava autorizada a captura de negros na África para o trabalho em território brasileiro.

Os escravos negros, raptados de sua terra natal (principalmente da África Setentrional, onde hoje estão, por exemplo, Angola, Moçambique e a República Democrática do Congo) e levados a um lugar estranho, eram controlados com mão-de-ferro pelos senhores de engenho, que delegavam aos feitores e outros agregados a fiscalização dos cativos. Os castigos físicos, como o açoitamento, estavam entre os métodos de intimidação que garantiam o trabalho, a obediência e a manutenção dos servos e se prolongaram pelos mais de 300 anos de escravidão no Brasil.

Uma grande estrutura de controle dos escravos também foi criada, tanto no nível da administração colonial quanto dos próprios senhores de escravos, com seus capitães-do-mato - profissionais especializados na recaptura de escravos fugitivos - e outros agregados, além da própria rede de informações informal que servia para controlar os fugitivos.

Como a condição de escravo era simplesmente determinada pelas características raciais dos subjugados no Brasil, era praticamente impossível a fuga e a reinserção social de eventuais fugitivos. O estigma da cor da pele foi determinante para o prolongamento da escravidão por mais de três séculos.

...E o negro reagiu à escravidão

Eles eram proibidos de praticar sua religião de origem africana ou de realizar suas festas e rituais africanos. Tinham que seguir a religião católica, imposta pelos senhores de engenho, adotar a língua portuguesa na comunicação. Mesmo com todas as imposições e restrições, não deixaram a cultura africana se apagar. Escondidos, realizavam seus rituais, praticavam suas festas, mantiveram suas representações artísticas e até desenvolveram uma forma de luta: a capoeira.

As mulheres negras também sofreram muito com a escravidão, embora os senhores de engenho utilizassem esta mão-de-obra, principalmente, para trabalhos domésticos. Cozinheiras, arrumadeiras e até mesmo amas de leite foram comuns naqueles tempos da colônia.
No Século do Ouro (XVIII) alguns escravos conseguiam comprar sua liberdade após adquirirem a carta de alforria. Juntando alguns "trocados" durante toda a vida, conseguiam tornar-se livres. Porém, as poucas oportunidades e o preconceito da sociedades acabavam fechando as portas para estas pessoas.

O negro também reagiu à escravidão, buscando uma vida digna. Foram comuns as revoltas nas fazendas em que grupos de escravos fugiam, formando nas florestas os famosos quilombos. Estes, eram comunidades bem organizadas, onde os integrantes viviam em liberdade, através de uma organização comunitária aos moldes do que existia na África. Nos quilombos, podiam praticar sua cultura, falar sua língua e exercer seus rituais religiosos. O mais famoso foi o Quilombo de Palmares, comandado por Zumbi.

Senzala - Alojamento dos escravos

A senzala era uma espécie de habitação ou alojamento dos escravos brasileiros. Elas existiram durante toda a fase de escravidão (entre o século XVI e XIX) e eram construídas dentro da unidade de produção (engenho, mina de ouro e fazenda de café).


As senzalas eram galpões de porte médio ou grande em que os escravos passavam a noite. Muitas vezes, os escravos eram acorrentados dentro das senzalas para evitar as fugas.


Costumavam ser rústicas, abafadas (possuíam poucas janelas) e desconfortáveis. Eram construções muito simples feitas geralmente de madeira e barro e não possuíam divisórias.


Os escravos dormiam no chão de terra batida ou sobre palha. Costumava haver na frente das senzalas um pelourinho (tronco usado para amarrar o escravo para a aplicação de castigos físicos).


Algumas fazendas do interior do Brasil preservaram estas senzalas que hoje são visitadas como pontos turísticos. Mostram um aspecto importante da história de nosso país: a falta de humanidade com que os africanos foram tratados durante séculos no Brasil.

Movimento abolicionista - Lei do Ventre Livre

A Lei do Ventre Livre, também conhecida como “Lei Rio Branco” foi uma lei abolicionista, promulgada em 28 de setembro de 1871 (assinada pela Princesa Isabel). Esta lei considerava livre todos os filhos de mulher escravas nascidos a partir da data da lei.

Como seus pais continuariam escravos (a abolição total da escravidão só ocorreu em 1888 com a Lei Áurea), a lei estabelecia duas possibilidades para as crianças que nasciam livres. Poderiam ficar aos cuidados dos senhores até os 21 anos de idade ou entregues ao governo. O primeiro caso foi o mais comum e beneficiaria os senhores que poderiam usar a mão-de-obra destes “livres” até os 21 anos de idade.

A Lei do Ventre Livre tinha por objetivo principal possibilitar a transição, lenta e gradual, no Brasil do sistema de escravidão para o de mão-de-obra livre. Vale lembrar que o Brasil, desde meados do século XIX, vinha sofrendo fortes pressões da Inglaterra para abolir a escravidão.

Junto com a Lei dos Sexagenários, A Lei do Ventre Livre (1887), a Lei do Ventre Livre serviu também para dar uma resposta, embora fraca, aos anseios do movimento abolicionista.

LEI Nº 2040 de 28.09.1871 - Lei do Ventre Livre, na íntegra

A Princesa Imperial Regente, em nome de S. M. o Imperador e Sr. D. Pedro II, faz saber a todos os cidadãos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1.º - Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei serão considerados de condição livre.

§ 1.º - Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Govêrno receberá o menor e lhe dará destino,em conformidade da presente lei.

§ 6.º - Cessa a prestação dos serviços dos filhos das escravas antes do prazo marcado no § 1°. se por sentença do juízo criminal reconhecer-se que os senhores das mães os maltratam, infligindo-lhes castigos excessivos.

Art. 2.º - O govêrno poderá entregar a associações, por êle autorizadas, os filhos das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores delas, ou tirados do poder dêstes em virtude do Art. 1.º- § 6º.

§ 1.º - As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a idade de 21 anos completos, e poderão alugar êsses serviços, mas serão obrigadas:

1.º A criar e tratar os mesmos menores;

2.º A constituir para cada um dêles um pecúlio, consistente na quota que para êste fim fôr reservada nos respectivos estatutos;-

3.º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação.

§ 2.º - A disposição dêste artigo é aplicável às Casas dos Expostos, e às pessoas a quem os juízes de órfãos encarregarem da educação dos ditos menores, na falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.

§ 4.º - Fica salvo ao Govêrno o direito de mandar recolher os referidos menores aos estabelecimentos públicos, transferindo-se neste caso para o Estado as obrigações que o § 1.º impõe às associações autorizadas.

Art. 3.º - Serão anualmente libertados em cada província do Império tantos escravos quantos corresponderem à quota anualmente disponível do fundo destinado para a emancipação...

Art. 4.º - É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O govêrno providenciará nos regulamentos sôbre a colocação e segurança do mesmo pecúlio.

§ 1.º - Por morte do escravo, a metade do seu pecúlio pertencerá ao cônjuge sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmitirá aos seus herdeiros, na forma da lei civil. Na falta de herdeiros o pecúlio será adjudicado ao fundo de emancipação, de que trata o art. 3.º...

§ 4.º - O escravo que pertencer a condôminos e fôr libertado por um dêstes, terá direito a sua alforria indenizando os outros senhores da quota do valor que lhes pertencer. Esta indenização poderá ser paga com serviços prestados por prazo não maior de sete anos...

§ 7.º - Em qualquer caso de alienação ou transmissão de escravos, é proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges e os filhos menores de doze anos do pai ou da mãe.

§ 8.º - Se a divisão de bens entre herdeiros ou sócios não comportar a reunião de uma família, e nenhum dêles preferir conservá-lo sob seu domínio, mediante reposição da quota, ou parte dos outros interessados, será a mesma família vendida e o seu produto rateado...

Art. 6.º - Serão declarados libertos:

§ 1.º - Os escravos pertencentes à nação, dando-lhes o govêrno a ocupação que julgar conveniente.

§ 2.º - Os escravos dados em usufruto à Coroa.

§ 3.º - Os escravos das heranças vagas.

§ 4.º - Os escravos abandonados por seus senhores. Se êstes os abandonarem por inválidos, serão obrigados a alimentá-los, salvo o caso de penúria, sendo os alimentos taxados pelo juiz de órfãos.

§ 5.º - Em geral, os escravos libertados em virtude desta lei ficam durante 5 anos sob a inspeção do govêrno. Êles são obrigados a contratar seus serviços sob pena de serem constrangidos, se viverem vadios, a trabalhar nos estabelecimentos públicos. Cessará, porém, o constrangimento do trabalho, sempre que o liberto exigir contrato de serviço.

Art. 8.º - O Govèrno mandará proceder à matrícula especial de todos os escravos existentes do Império, com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se fôr conhecida.

§ 1.º - O prazo em que deve começar e encerrar-se a matrícula será anunciado com a maior antecedência possível por meio de editais repetidos, nos quais será inserta a disposição do parágrafo seguinte.

§ 2.º - Os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados não forem dados à matrícula, até um ano depois do encerramento desta, serão por êste fato considerados libertos.

§ 4.º - Serão também matriculados em livro distinto os filhos da mulher escrava, que por esta lei ficam livres. Incorrerão os senhores omissos, por negligência, na multa de 100$000 a 200$000, repetidas tantas vêzes quantos forem os indivíduos omitidos, e por fraude nas penas do ari. 179 do código criminal.

§ 5.º - Os párocos serão obrigados a ter livros especiais para o registro do nascimento e óbitos dos filhos de escravas, nascidos desde a data desta lei. Cada omissão sujeitará os párocos à multa de 100$000.

Art. 9.º - O Govêrno em seus regulamentos poderá impor multas até 100$000 e penas de prisão simples até um mês.

Art. 10º - Ficam revogadas as disposições em contrário. Manda, portanto, a tôdas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém. O Secretário de Estado de Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas a faça imprimir, publicar e correr.

Dada no Palácio do Rio de Janeiro, aos 28 de setembro de 1871, 50.º da Independência e do Império

Princesa Imperial Regente - Teodoro Machado Freire Pereira da Silva.


Lei dos "sexagenários"

A Lei n.º 3.270, também conhecida como Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva Cotejipe, foi promulgada a 28 de setembro de 1885 e garantia liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade.
Houve grande resistência por parte dos senhores de escravos e de seus representantes na Assembléia Nacional., mesmo tendo pouco efeito prático, pois libertava somente escravos que, por sua idade, eram menos valorizados.

A pressão sobre o Parlamento se intensificou a partir de sua proposta, em 1884. Ao projeto, vindo do liberal ministério Sousa Dantas, os escravocratas reagiram com tanto rigor, que a lei só foi aprovada em 1885, após aumentar o limite de idade do cativo de sessenta para sessenta e cinco anos. A maioria dos sexagenários estavam localizados nas províncias cafeeiras, o que explica a resistência na Câmara e no Senado.

Poucos foram os exemplos de comunidades formadas por escravos fugitivos que tiveram sucesso. Entre eles, o mais lembrado é o Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, entre Alagoas e Pernambuco, que teria durado quase 100 anos, de 1602 a 1694, e reunido até 20.000 habitantes em diversas comunidades.

Deve-se lembrar que a construção do país hoje conhecido como Brasil foi possível devido à força de trabalho dos povos negros africanos e de seus descendentes durante os períodos Colonial e Imperial. Sem estes trabalhadores, a Metrópole portuguesa dificilmente teria condições de povoar e explorar os ricos recursos encontrados em nosso território, principalmente em razão da restrita população de Portugal à época.

O problema a se considerar é a forma completamente desumana a que estes trabalhadores foram seqüestrados de sua terra natal e forçados a servir os senhores de então. Os escravos, além da própria situação servil, viviam em condições muito precárias, sem qualquer qualidade alimentar, sanitária ou de habitação, já que era mais barato ao senhor de escravos adquirir um novo servo do que manter os trabalhadores por muitos anos.

Outros grandes legados do povo negro ao Brasil foram a sua cultura e a própria constituição da população tipicamente brasileira a partir da miscigenação. No primeiro caso, são notórias as influências da música, arte, religião, folclore e culinária dos africanos e seus descendentes na origem de nossa cultura. Um dos exemplos é o prato mais brasileiro de todos: a feijoada. Ao aproveitar as partes menos nobres do porco, que eram dispensadas pelos senhores aos escravos, os negros foram responsáveis pela criação de uma das iguarias mais saborosas de nossa culinária.

Já em relação à formação do "povo brasileiro", a miscigenação entre os negros e as outras populações presentes no país (brancos e indígenas) deu base à composição racial tipicamente brasileira. Segundo as respostas espontâneas dadas pelos entrevistados ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no Censo Demográfico 2000, a população brasileira é formada por 53,74% de brancos, 38,45% de pardos, 6,21% de pretos, 0,45% de amarelos, 0,43% de indígenas e 0,71% de cidadãos que não declararam cor nem raça específica na pesquisa.

Além de terem sido o alicerce do trabalho na lavoura da cana-de-açúcar durante o ciclo econômico alimentado por este produto, os escravos também foram a base da mão-de-obra no chamado ciclo do ouro, com a exploração do metal raro na região de Minas Gerais.

Somente na segunda metade do século XIX, com os movimentos abolicionistas ganhado corpo no país, é que a mão-de-obra escrava passou a ser substituída pelo trabalho livre, principalmente dos imigrantes europeus, que começaram a chegar ao Brasil nas últimas décadas daquele século e se dedicaram, principalmente, à lavoura do café, o quarto grande ciclo econômico da história brasileira.

Os ideais abolicionistas

Os ideais abolicionistas ganharam força a partir da independência do Brasil de Portugal, em 1822. Porém, como toda a base econômica do país era dependente da mão-de-obra escrava, os interesses da aristocracia vigente eram mantidos, apesar das pressões em contrário. Assim, o Brasil acabou sendo o último país das Américas a abolir a escravidão, somente em 1888, ou 84 anos depois da proclamação do Haiti como primeiro Estado negro do continente, em 1804.

Outro fator que colaborou com o declínio da exploração dos escravos no Brasil foi o empenho da Inglaterra em banir o tráfico de escravos. A partir de 1815, o governo inglês - sentindo-se prejudicado pelo comércio de mão-de-obra escrava e prevendo a necessidade de ampliar mercados para seus produtos manufaturados em massa a partir da Revolução Industrial - proibiu o tráfico entre a África e a América e passou a perseguir aqueles que o praticavam. Neste período, foi amplamente utilizado um sistema de repressão baseado em ações da expressiva armada naval inglesa, que caçava navios negreiros pelo Oceano Atlântico.

Naquela época, foram notórios os episódios de extermínio de escravos capturados na África quando algum navio negreiro se deparava com uma nau da armada britânica em plena rota para a América. Simplesmente, os capturados, ainda atados a suas correntes, eram atirados ao mar com pesos amarrados aos corpos para que desaparecessem no fundo das águas. Sem a prova do crime (os próprios africanos capturados), os ingleses não podiam deter os comerciantes de escravos. Imagem similar foi reproduzida no filme "Amistad", do diretor norte-americano Stephen Spielberg.

Somente em 1831 o governo brasileiro começou a implementar medidas para restringir o tráfego negreiro. Na ocasião, o governo brasileiro respondia a uma exigência britânica imposta para que a independência do Brasil fosse reconhecida. No entanto, a determinação legal brasileira nunca foi realmente cumprida. Somente em 1850, com a lei Euzébio de Queiroz, é que a repressão oficial ao tráfico negreiro tomou corpo.
Estima-se que cerca de 4,5 milhões de negros africanos teriam sido trazidos ao Brasil nos três séculos de tráfico negreiro, sem contar os mortos no transporte em navios negreiros que, acredita-se, chegavam a cerca de 40% do número total de capturados.

Estímulos à abolição da escravatura

Em 1865, os Estados Unidos da América aboliram a escravidão em seu território. A seguir, a Guerra do Paraguai (1865-1870) foi outro impulso importante aos chamados movimentos abolicionistas, já que os escravos que engajavam ao combatente recebiam como prêmio a própria liberdade. Porém, aqueles que sobreviveram aos combates e voltavam da batalha sofriam pressões de seus antigos donos para que retornassem à condição de servos.

Em 28 de setembro de 1871, foi promulgada a chamada Lei do Ventre Livre, por iniciativa do visconde de Rio Branco, que estabelecia que os filhos de escravos nascidos a partir daquela data seriam pessoas livres. Porém, a lei não chegou a ter valor, já que dava aos senhores de escravos a tutela dos libertos até os 21 anos de idade, o que, na prática, representava a manutenção da condição servil. Como a abolição aconteceu em 1888, nenhuma pessoa chegou a ser beneficiada pela lei.

O movimento abolicionista ganhou corpo a partir de 1880, com o engajamento de importantes personalidades políticas e da vida pública de então. Alguns baluartes desse movimento foram Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, André Rebouças, Luís Gama e Silva Jardim. Em 1884, o Ceará antecipou-se ao governo imperial e decretou o fim da escravidão em seu território.

Em 1885, foi promulgada a chamada Lei do Sexagenário, ou Lei Saraiva-Cotegipe, que dava liberdade aos escravos com mais de 60 anos de idade, desde que os proprietários fossem indenizados. Como a Lei do Ventre Livre, os resultados da nova lei foram restritos, já que poucos cativos conseguiam atingir tal idade.

Abolição dos escravos no Brasil - 13 de maio de 1888

A história da escravidão oficial no Brasil termina em 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel, filha do Imperador D. Pedro II. O texto da lei trazia apenas dois artigos: "Artigo 1º - É declarada extinta a escravidão no Brasil; Artigo 2º - Revogam-se as disposições em contrário". Na ocasião, existiam pouco mais de 700 mil escravos no país.
No entanto, o destino imediato dos negros libertos não foi o mais confortável. Deixaram a condição de servos mas não obtiveram qualquer concessão oficial de assistência, sendo sujeitos à miséria completa. Largado à própria sorte, esse grande contingente de pessoas se viu sem perspectivas de trabalho (afinal, a mais bem qualificada mão-de-obra dos imigrantes europeus já estava presente), de educação e de inclusão social.

Dívida Social

Passados quase 116 anos desde a abolição da escravatura, a dívida social de nosso país com as populações descendentes dos antigos escravos africanos é ainda enorme. Indicadores sociais mostram que grande parte dos negros e pardos do Brasil vivem em condições precárias. O acesso a benefícios básicos, como educação, trabalho, saneamento e alimentação suficiente para uma correta nutrição, é bastante restrito a estas parcelas da população.

O estigma da escravidão hoje é transferido em forma de preconceito contra minorias menos assistidas, que são impelidas a viver em condições precárias e, muitas vezes, à merce de ambientes violentos e insalubres.
Algumas iniciativas que visam dirimir tais dívidas sociais com os afrodescendentes vêm sendo adotadas nos últimos anos, como é o caso da instituição de cotas raciais para o ingresso em universidades públicas. Porém as discussões ainda não tomaram um corpo que viabilize a efetiva adoção de tal política e nem há como garantir que a iniciativa garantirá uma inserção social mais efetiva aos beneficiados.

O que é certo é que sem a inclusão social democrática, plena e completa de todos os diversos grupos populacionais quem formam a Nação brasileira a um sistema mínimo de direitos, deveres e perspectivas, o almejado desenvolvimento nacional, meta vislumbrada desde o início de nossa história, nestes 500 anos de existência, não passará de retórica vazia.

O Quilombo dos Palmares

O Quilombo dos Palmares (localizado na atual região de União dos Palmares, Alagoas) era uma comunidade auto-sustentável, um reino (ou república na visão de alguns) formado por escravos negros que haviam escapado das fazendas, prisões e senzalas brasileiras. Ele ocupava uma área próxima ao tamanho de Portugal e situava-se onde era o interior da Bahia, hoje estado de Alagoas. Naquele momento sua população alcançava por volta de trinta mil pessoas.

Zumbi nasceu em Palmares, Alagoas, livre, no ano de 1655, mas foi capturado e entregue a um missionário português quando tinha aproximadamente seis anos. Batizado 'Francisco', Zumbi recebeu os sacramentos, aprendeu português e latim, e ajudava diariamente na celebração da missa. Apesar destas tentativas de aculturá-lo, Zumbi escapou em 1670 e, com quinze anos, retornou ao seu local de origem. Zumbi se tornou conhecido pela sua destreza e astúcia na luta e já era um estrategista militar respeitável quando chegou aos vinte e poucos anos.

Por volta de 1678, o governador da Capitania de Pernambuco cansado do longo conflito com o Quilombo de Palmares, se aproximou do líder de Palmares, Ganga Zumba, com uma oferta de paz. Foi oferecida a liberdade para todos os escravos fugidos se o quilombo se submetesse à autoridade da Coroa Portuguesa; a proposta foi aceita, mas Zumbi rejeitou a proposta do governador e desafiou a liderança de Ganga Zumba. Prometendo continuar a resistência contra a opressão portuguesa, Zumbi tornou-se o novo líder do quilombo de Palmares.

Quinze anos após Zumbi ter assumido a liderança, o bandeirante paulista Domingos Jorge Velho foi chamado para organizar a invasão do quilombo. Em 6 de fevereiro de 1694 a capital de Palmares foi destruída e Zumbi ferido. Apesar de ter sobrevivido, foi traído por Antonio Soares, e surpreendido pelo capitão Furtado de Mendonça em seu reduto (talvez a Serra Dois Irmãos). Apunhalado, resiste, mas é morto com 20 guerreiros quase dois anos após a batalha, em 20 de novembro de 1695. Teve a cabeça cortada, salgada e levada ao governador Melo e Castro. Em Recife, a cabeça foi exposta em praça pública, visando desmentir a crença da população sobre a lenda da imortalidade de Zumbi.

Em 14 de março de 1696 o governador de Pernambuco Caetano de Melo e Castro escreveu ao Rei: "Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal, para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares."
Zumbi é hoje, para determinados segmentos da população brasileira, um símbolo de resistência. Em 1995, a data de sua morte foi adotada como o dia da Consciência Negra. É também um dos nomes mais importantes da Capoeira.

Quem foi  ZUMBI DOS PALMARES?

Palmares surgiu a partir da reunião de negros fugidos da escravidão nos engenhos de açúcar da Zona da Mata nordestina, em torno do ano de 1600. Eles se estabeleceram na Serra da Barriga, onde hoje é o município de União dos Palmares (AL). Ali, devido às condições de díficil acesso, puderam organizar-se em uma comunidade que, estima-se, chegou a reunir mais de 30 mil pessoas.

Muitos dos quilombolas eram índios e brancos pobres, como conta texto na página da internet da Fundação Joaquim Nabuco, outro órgão federal, com sede em Recife. Nabuco foi expoente do movimento abolicionista. "A vida de Zumbi, o rei do Quilombo dos Palmares, é pouco conhecida e envolta em mitos e discussões", alerta o texto - vários dos trechos abaixo, portanto, são objeto de polêmicas entre os historiadores.

Ao longo do século 17, Palmares resistiu a investidas militares dos portugueses e de holandeses - que dominaram parte do Nordeste de 1630 a 1654. Segundo o historiador Pedro Paulo Funari, no artigo "A República de Palmares e a Arqueologia da Serra da Barriga", em 1644, um ataque holandês vitimou 100 pessoas e aprisionou 31, de um total de 6 mil que viviam no quilombo.

Funari também afirma que o quilombo (termo derivado de língua da região de Angola) era chamado pelos portugueses de República dos Palmares, nos documentos da época, e termos como mocambo foram posteriormente utilizados no sentido pejorativo. O quilombo era composto por várias aldeias, de nomes africanos, como Aqualtene, Dombrabanga, Zumbi e Andalaquituche, indígenas, como Subupira, ou Tabocas, e portugueses, como Amaro. A capital era Macacos, termo de origem incerta (pode ser português ou corrutela do banto macoco).

Zumbi nasceu livre, em Palmares, provavelmente em 1655, e, segundo historiadores, seria descendente do povo imbamgala ou jaga, de Angola. Ainda na infância, durante uma das tentativas de destruição do quilombo, ele foi raptado por soldados portugueses e teria sido dado ao padre Antonio Melo, de Porto Calvo (hoje, em Alagoas), que o batizou de Francisco e ensinou-lhe português e latim. Aos dez anos tornou-o seu coroinha.

Com 15 anos, Francisco foge, retorna a Palmares e adota o nome de Zumbi - termo de significado incerto. O nome de Zumbi apareceu pela primeira vez em 1673, em relatos portugueses sobre a expedição chefiada por Jácome Bezerra, que foi desbaratada pelos quilombolas.
Aos 20 anos, Zumbi destacou-se na luta contra os militares comandados pelo português Manuel Lopes. Nesses combates, chegou a ser ferido com um tiro na perna.

Em 1678, o governador de Pernambuco, Pedro de Almeida, propõe a Palmares anistia e liberdade a todos os quilombolas. Segundo o historiador Edison Carneiro, autor do livro "O Quilombo dos Palmares", ao longo dos quase 100 anos de resistência dos palmarinos, foram inúmeras as ofertas como essa.

Ganga Zumba (possivelmente um título - nganga significa sacerdote, e nzumbi "possui conotações militares e religiosas", segundo Funari), então líder de Palmares, concorda com a trégua, enquanto Zumbi é contra, por argumentar que o acordo favoreceria a continuidade do regime de escravidão praticado nos engenhos. Zumbi vence a disputa, é aclamado líder pelos que discordavam do acordo e, aos 25 anos, torna-se líder do quilombo.

Ao longo da vida, Zumbi teria tido pelo menos cinco filhos. Uma das versões diz que ele teria se casado com uma branca, chamada Maria. Ao longo de seu reinado, Zumbi passou a comandar a resistência aos constantes ataques portugueses.
Em 1692, o bandeirante paulista Domingo Jorge Velho, uma espécie de mercenário da época, comandou um ataque a Palmares e teve suas tropas arrasadas. O quilombo foi sitiado e só capitulou em 6 de fevereiro de 1694, quando os portugueses invadem o principal núcleo de resistência, a Aldeia do Macaco.

Ferido, Zumbi foge. Baleado, ele teria caído de um desfiladeiro, o que deu origem à história de que teira se suicidado para evitar a prisão. Resistiu na mata por mais de um ano, atacando aldeias portuguesas. Em 20 de novembro do ano seguinte, depois de ser traído por um antigo companheiro, Antonio Soares, Zumbi é localizado pelas tropas portuguesas.

Preso, Zumbi é morto, esquartejado, e sua cabeça é levada a Olinda para ser exposta publicamente. Entre outros objetivos, o de acabar com os boatos que corriam entre os negros escravizados do litoral de que o líder quilombola era imortal.

Sistema de cotas nas faculdades

O sistema de cotas para negros nas universidades, adotado pela primeira vez na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em 2001, ainda gera polêmica e divide opiniões. Há vários argumentos contra e a favor, todos bastante sensatos. Nem mesmo o governo brasileiro parece saber que posição tomar e demonstra ambigüidade sobre a questão. Tanta incerteza, no entanto, tem um ponto positivo: a reserva de vagas gera um debate importante sobre o racismo no Brasil, um país onde o preconceito existe, ainda que de forma velada.

A primeira instituição federal de ensino superior a implementar o sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB), que aprovou em junho deste ano um plano de metas para integração racial e étnica. O projeto, que entrará em vigor em 2004, prevê a reserva de vagas para negros e, num percentual menor, índios, durante dez anos.

Um dos autores da proposta da UnB, o professor José Jorge de Carvalho, do Departamento de Antropologia, acredita que o sistema de cotas é a única forma de se resolver o problema da exclusão racial no curto prazo. O preconceito, segundo ele, está presente nas salas de aula. Carvalho passou a defender as cotas depois de testemunhar o caso de um aluno negro prejudicado por um professor, aparentemente por motivos raciais.

"Há poucos negros na universidade e isso dificulta que eles se unam para lutar por seus direitos. É preciso mudar o tipo de relação que existe na academia. E isso só vai acontecer quando houver vários negros lá dentro", afirma Carvalho.
Os dados apresentados pelo professor mostram que a exclusão é perversa: 97% dos atuais universitários brasileiros são brancos, contra 2% de negros e 1% de amarelos. O desequilíbrio, num país em que 45% da população é negra, deixa claro que são necessárias medidas urgentes para inserção do negro no ensino superior. Mas a solução das cotas, a única de caráter prático apresentada até o momento, está longe de ser uma unanimidade.

Divisão racial

Alguns argumentam que a idéia de raça deve ser abolida, por estimular a divisão do país em grupos étnicos. A cisão racial seria um passo em direção ao conflito. "Desde o Modernismo, nossa sociedade se vê como misturada. A introdução do sistema de cotas rompe com esse ideário e produz uma sociedade que tem a obrigação legal de se classificar como 'branca ou negra'. Em outros países, políticas que reforçaram a condição racial geraram conflitos inimagináveis, como em Ruanda, Kosovo e África do Sul", alerta Yvonne Maggie, professora titular de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para Carvalho, no entanto, a adoção de cotas apenas revela um preconceito que já é real. "Pode explicitar o racismo, que é latente, mas não gerar um preconceito maior que o já existente. Os negros estiveram fora do sistema apesar da mestiçagem, que não garantiu a eles o acesso ao ensino superior. Geneticamente não há raças, mas socialmente elas existem: a discriminação é pela cor da pele. A intervenção no sistema deve ser racial. Sem as cotas, os negros continuarão fora do sistema.", ressalta.

Mas segundo Yvonne, historicamente, a maioria das entidades de defesa dos negros tentou combater o preconceito sem usar a idéia de raça como referência ou exigir qualquer tipo de favorecimento. Ela cita o exemplo do movimento radicado na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, conhecido como Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), que além de preparar jovens para ingressarem na universidade, procura dar noções de direitos sociais e cidadania.
"No PVNC, negros e pobres (brancos ou não) concorriam em igualdade de condições. Os mentores do movimento eram contra qualquer tipo de ajuda financeira ou cotas. Eles não queriam modificar o sistema, mas sim preparar esses alunos para ingressar nele.

As cotas eram consideradas por muitos como favor e eles queriam concorrer em pé de igualdade. Esta era a primeira versão do movimento, que inverteu o seu paradigma e hoje quer que os negros tenham cotas, ou seja, privilégio", explica a antropóloga.
Por esse motivo, Yvonne defende políticas de inclusão com base na situação econômica do aluno. A lei estadual que introduziu as cotas, prevendo 40% de vagas para negros e pardos, nas universidades do Rio de Janeiro, no ano passado, foi modificada. Se antes negros e pardos tinham o privilégio, independentemente de sua posição social, agora só negros carentes têm direito às cotas. Para o vestibular de 2004, estão previstas 20% das vagas para estudantes da rede pública de ensino, 20% para candidatos negros e 5% para portadores de deficiências físicas e integrantes de minorias étnicas, todos comprovadamente carentes.

O Princípio da igualdade

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam que dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha de pobreza, 70% são negros; entre os 53 milhões de pobres do país, 63% são negros. A política de cotas aplicada a carentes beneficiaria principalmente a população negra. Esta é a opinião de Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, para quem a reserva de vagas para negros seria contrária à democracia. "As cotas são uma solução simplista, que rompe com o princípio republicano básico de igualdade entre os cidadãos. Os negros não têm acesso ao ensino superior porque, na maioria dos casos, são pobres e passaram anos estudando em escolas públicas arruinadas. Em vez de cotas, o Estado deveria aumentar os investimentos no ensino público. Em poucos anos, os negros passariam a ocupar as melhores vagas nas universidades", acredita Magnoli.

O jurista Ives Gandra vai além. Segundo ele, o sistema de cotas é inconstitucional, porque fere o princípio fundamental de igualdade entre os cidadãos: "É uma discriminação às avessas, em que o branco não tem direito a uma vaga mesmo se sua pontuação for maior. Reconheço que o preconceito existe, mas a política afirmativa não deve ser feita no ensino superior, e sim no de base".
É justamente no ensino público que reside uma outra crítica à reserva de vagas. Ao adotar a medida, que não gera custos para os cofres públicos, o governo pode deixar para segundo plano o problema da educação. Segundo Magnoli, as cotas produzem um efeito estatístico positivo, ao aumentar o número de negros nas universidades, mas não acabam com a exclusão.

"Colocar um punhado de negros nas universidades por meio de cotas não resolve o problema social. Beneficia apenas aqueles indivíduos que entram. A mim, me espanta que pessoas de esquerda defendam as cotas. O pensamento esquerdista se baseia na idéia da universalidade de direitos. Só o pensamento ultraliberal não vê os indivíduos como um conjunto de cidadãos, mas sim de consumidores. No interior desse conceito é que surge a idéia de políticas compensatórias, para corrigir desvios de mercado", critica Magnoli.

Medida emergencial

Os defensores das cotas concordam que o sistema não é uma solução definitiva. A maioria dos programas é temporária, como uma medida emergencial. Mas se essa política não é ideal, poucas são as alternativas viáveis e de resultados imediatos apresentadas até o momento. O investimento do governo no ensino básico, por exemplo, depende de fatores políticos de difícil previsão e só terá efeitos no longo prazo.

Para o professor Antonio Sérgio Guimarães, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do programa de pesquisa, ensino e extensão em relações étnicas e raciais, o fundamental é não adiar a solução do problema. "As cotas foram, até agora, o único mecanismo encontrado por algumas universidades brasileiras para resolver o difícil acesso de negros e pobres às universidades públicas.

É uma iniciativa corajosa e só dentro de alguns anos poderemos avaliar se realmente cumpre a sua finalidade. As piores opções são não fazer nada ou querer nos fazer crer que está tudo bem, ou que as cotas representam um grande perigo para a cultura brasileira, para as relações raciais no Brasil, para o futuro da humanidade. O que realmente não gosto é do conservadorismo travestido de humanismo. Se existem meios melhores que as cotas para aumentar o acesso de negros à universidade pública, que se adotem esses meios, que se façam programas sérios e eficientes, sem transferir o problema para outra esfera ou outra geração", avalia Guimarães.

Outra crítica ao sistema de cotas diz respeito à identificação dos candidatos às vagas reservadas. Até o momento, as universidades adotaram como critério a auto-declaração. A solução gerou controvérsias, depois que alguns candidatos brancos classificaram-se como negros para obter o benefício das cotas.
"Obviamente, qualquer critério pode ser burlado. Se as pessoas acham que nossa especificidade é sermos trapaceiros e que nenhuma política social pode funcionar entre nós, estaremos então fadados à lei de mercado mais selvagem", rebate Guimarães.

Debate sobre o sistema de cotas

O governo vem agindo com cautela. O ministro da Educação, Cristovam Buarque, reconhece que o sistema de cotas não é ideal, mas apóia a medida até que o ensino público tenha condições de preparar melhor os estudantes. Buarque tenta estimular a reserva de vagas para negros, mas não quer impor a medida por leis, o que poderia ser interpretado como interferência na autonomia das universidades.

"A política de cotas não é uma novidade, já foi adotada para defender mulheres na política, por exemplo, e ninguém a considerou atrasada. Quando é para o negro, surge a discussão. Nós, do movimento negro, não desejamos ferir a autonomia das universidades. Mas há uma demanda, poucos negros estão no ensino superior", declara o deputado federal Gilmar Machado (PT-MG), um dos coordenadores da bancada de negros na Câmara dos Deputados.

Em julho deste ano, o Ministério da Educação lançou o edital do programa Diversidade na Universidade, que promete repassar recursos de até US$ 100 mil para instituições que mantenham projetos educativos para grupos socialmente desfavorecidos. As concorrentes devem ter pelo menos 51% de afro-descendentes e/ou indígenas e repassar entre 40% e 50% do valor para os estudantes, sob a forma de bolsas.

Esse tipo de ajuda financeira deveria ser avaliado pelos programas de cotas, porque pode decidir a permanência de alunos beneficiados nas faculdades. Como a maioria da população negra é pobre, é de se esperar que boa parte desses estudantes tenham dificuldades em se manter nas universidades, mesmo que públicas. Além das despesas de transporte e alimentação, há os custos de materiais didáticos. Em algumas áreas, como a saúde, o preço de um livro pode superar um salário mínimo. Sem as bolsas de apoio, o sistema pode redundar em vagas ociosas.

"O aluno que já é carente, na universidade terá ainda mais gastos. Como ele vai fazer para se manter? Temos que pagar passagem, alimentação, fotocópias. Já pensei em trancar o curso no próximo semestre, para poder trabalhar um turno a mais. Só não fiz isso porque me aconselharam a não desistir, pois seria difícil voltar depois", relata a aluna de pedagogia Sueli das Neves, que trabalha como operadora de telemarketing e entrou na Uerj pelo sistema de cotas no início do ano.

Em meio a tantos argumentos, a estudante Marisa Santana, da graduação em ciências sociais da UFRJ, sente-se dividida. Ex-aluna e ex-professora do PVNC, ela defende a necessidade de um amplo debate sobre o racismo, mais do que um posicionamento da sociedade em relação às cotas.
"Ser contra ou a favor limita a discussão. O importante é pensar sobre o racismo.

Eu mesma fico dividida: como ativista do movimento negro, sou totalmente a favor das cotas; como cientista social, sou contra. Quando se toma um critério racial como base para a definição das cotas, fomenta-se o preconceito. Já ouvi coisas terríveis, como 'negro é tão inferior que precisa de cotas'. Acho que as cotas deveriam ser focalizadas em pobres, não em negros, como fez a Uerj. Antes da mudança, muitos dos que entraram eram negros que tiveram uma boa educação. Isso não é revolução nenhuma, talvez eles tivessem entrado de qualquer forma", diz a estudante.

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