FILOSOFIA - CRISTIANISMO - ASCETICISMO

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A razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de que temos imediatamente experiência, não se pode explicar por si mesmo, e, logo, exige absolutamente uma explicação. Entretanto, para que o problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até Deus. E Deus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não pode certamente ser imanente, mas deve ser transcendente e criador, o que eqüivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve ser concebida segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das coisas do nada por parte de Deus.

Ascetismo - Teísmo

Das precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e essencialmente numa praxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas por causa da desordem introduzida na ordem da natureza pelo pecado original.

Em verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio teísmo, e, precisamente, no conceito de criação, tomando-se esta palavra "ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos bens criados, mas no sentido de que o homem, sendo criatura e portanto dependendo totalmente de Deus, deve reconhecer praticamente esta sua dependência absoluta, este seu nada ser por si .

Ora, tal definição exclui que Deus organize uma pressuposta matéria qualquer, com respeito à qual Deus seria passivo e, logo, não mais ato-puro, não mais Deus, não mais explicação do mundo. Contrariamente a quanto pensava o dualismo grego, Deus cria toda a realidade. Daí nada se poder levantar contra ele e proclamar a sua autonomia. Além disso, é excluído que o mundo seja, de qualquer modo, formado pela mesma natureza de Deus, pois, neste caso, haveria a contradição de que Deus seria da mesma natureza do mundo, que não tem em si a sua explicação e, por isso, a procura em Deus. Contrariamente ao que pensa o panteísmo, Deus, criando, dispõe uma realidade essencialmente distinta de si, de modo que nenhum ser criado pode, de modo nenhum, exigir de participar da natureza divina e enaltecer como tal a sua natureza.

A este segundo princípio é conexa a absoluta liberdade da criação. Com efeito, se ela fosse necessária, ter-se-ia uma contradição semelhante à precedente, a saber: Deus teria necessidade do mundo que ele deve explicar. Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um outro mundo, entre infinitos mundos possíveis, de modo que Deus, querendo criar o mundo, pode única e absolutamente criá-lo para a sua glória - embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a atualidade, a perfeição plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso admitir em Deus uma indigência, com todas as conseqüências acima mencionadas. Deus, portanto, cria o mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o cria livremente e para a sua glória. E o homem faz parte dessa criação.

Compreende-se, então, como a atitude prática, fundamental, da criatura racional deva ser, em conseqüência do conceito de criação, uma atitude de reconhecimento do próprio nada, não só na ordem do ser, mas também na ordem de operar, porque nada de quanto é real pode escapar à absoluta causalidade de Deus. Aqui falamos, evidentemente, do operar positivo, isto é, do bem, porquanto o mal, sendo negação, privação, não tem causa eficiente, mas deficiente, como diz Agostinho. Não Deus, por conseqüência, mas o homem é o autor do mal. Então, a humildade será a virtude essencial do sábio, como o orgulho será o pecado essencial do estulto; nas relações práticas com Deus - que constituem o objeto da religião em geral - e também nas relações com a remanente realidade, não em si, mas enquanto querida por Deus.

Ascetismo - Cristianismo

Deus quis remir o homem, exigindo ao mesmo tempo que a sua justiça fosse dignamente satisfeita mediante uma expiação infinita por parte do Verbo humanado. Esta expiação divina, porém, não dispensava, mas apenas tornava possível a expiação por parte do homem, precisamente através dos sofrimentos provenientes da desordem decorrida do pecado. Unicamente deste modo o homem era redimido, unicamente através da justiça se manifestava a misericórdia de Deus. Antes, quis Deus que fosse juntamente realizada a sua maior glória e o maior bem do homem, através do sacrifício mais completo por parte de Cristo, bem como por parte do homem, dada sempre a desordem das coisas, proveniente do pecado.

Cristianismo - Asceticismo

Esta - tão significativa - praxe ascética tem a sua primeira e perfeita realização em Cristo, redentor pela cruz. Tornando-se ele, deste modo, o modelo e o ideal da vida cristã. Mas, para o mundo, esta praxe ascética será loucura e escândalo . Os Gentios julgavam naturalmente loucura a renúncia cristã. Os próprios israelitas sonhavam o Redentor cercado de grandeza e poder, e não de humildade e sofrimento. Cristo, ao contrário, menosprezando a prudência e a fortaleza humanas, envereda pelo caminho da cruz, que repugna à natureza, mas já é a única via de salvação e de santificação. E, assim, Cristo - realizando a sua obra - foi julgado justo, mas não lhe foi feita justiça pela majestade do direito; foi condenado pelo povo que ele viera remir; foi abandonado pelos próprios e mais chegados discípulos, um dos quais - o que devia ser seu vigário - até o renegou, e um outro o traiu de morte. E morreu abandonado sobre a cruz, assistido por algumas pobres mulheres. Humanamente e também racionalmente falando, unicamente desta maneira se realizava a glória de Deus e a redenção do homem em toda a sua plenitude.

Cristo não apenas realizou na sua pessoa o sacrifício redentor, mas também apontou aos homens este caminho como sendo o caminho único para a salvação e a perfeição, e confirmou a doutrina com o exemplo, propondo-se como modelo de todos os cristãos: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. A vida cristã será, portanto, a imitação de Cristo crucificado - diversamente embora, segundo os graus de perfeição cristã e as concretas diferenças individuais. Tal ensinamento ascético de Cristo - que, em concreto, se acha em toda a sua vida e, em especial, na sua morte - em abstrato se acha em toda a sua doutrina, mas especialmente no sermão da montanha , o sermão das bem-aventuranças , que se pode considerar o compêndio do espírito do Cristianismo. Aí são invertidos os valores terrenos, e exaltados não os ricos, os gozadores, os poderosos, que o mundo inveja, mas os pobres, os sofredores, os mesquinhos, conforme a sabedoria cristã, o que à orgulhosa razão humana parece estultícia. Deste modo Cristo dirá que o busquemos - isto é, que procuremos a sua imagem, a sua imitação - não no homem feliz, para gozarmos a vida em sua companhia, mas no homem sofredor, com o qual e para o qual sofremos e, destarte, acharemos alimento ascético.

Este ensinamento, Cristo dirige a todos os seus seguidores, como condição necessária para a salvação - se alguém quer vir após mim, renuncia-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me . Entretanto, aos que aspiram à santidade, à plenitude da vida cristã, à perfeita imitação dele, impõe Cristo a renúncia total aos grandes bens do mundo: renúncia à riqueza, à família, à liberdade, para abraçar a pobreza, a castidade, a obediência. E esta a chamada via dos conselhos evangélicos , em contraposição com a vida comum dos preceitos. E realiza-se na clássica praxe cristã dos votos religiosos, sempre idêntica e imutável na substância, embora variável nas aplicações concretas.

Ascetismo - Caridade

Esta moral ascética cristã é racionalmente fundada sobre o teísmo e a Revelação. Garante, pois, ao homem, a consecução da felicidade na vida eterna, e de uma felicidade que transcende toda aspiração e capacidade humana. Na vida temporal esta moral ascética apresenta-se também como a mais sábia, porquanto torna conformada e voluntária a aceitação do sofrimento, já que não se apresenta mais como inesperado e trágico, pois não fica certamente dispensado da dor quem neste mundo entende de viver apenas moralmente e não heroicamente, e nem sequer quem entende de gozar livremente dos bens da terra. Provê igualmente esta moral ascética o bem dos outros, ou não parece, ao contrário, - por causa da renúncia ao mundo devastado pelo mal - isolar fatalmente os homens dos seus semelhantes? E este isolamento não é ainda mais acentuado, quando a perfeição se eleva dos preceitos aos conselhos?

Poderia assim parecer, mas assim não é. Antes de tudo, tal egoísmo está em franco contraste com o conceito de caridade, dominante na moral cristã, em lugar do clássico conceito de justiça. A caridade cristã purificou a civilização antiga da barbárie da exposição das crianças, da escravidão, das lutas dos gladiadores, barbárie que se repete, mais ou menos intensamente, no egoísmo de toda civilização puramente humana. A caridade cristã favoreceu ainda obras numerosas e fecundas para os infelizes, os velhos, os pobres, os doentes, mais ou menos desprezados e negligenciados na civilização antiga, bem como em toda civilização mundana em geral, apesar das aparências contrárias.

Em segundo lugar, a convivência social, moral, racional, não é possível nas atuais condições de egoísmo e malvadez humana, mas faz-se mister a ascética cristã para vencer este egoísmo mediante a paciência, a humildade, a caridade. Considere-se, por exemplo, a questão econômica e o problema da autoridade, que preocupam tão profundamente a sociedade humana. A questão econômica não se pode resolver naturalmente. Com efeito - prescindindo do fato de que o trabalho, em seus termos atuais, é uma pena, como claramente o prova a dura experiência, e a Revelação disto dá explicação e justificação - não somente a justiça não consegue abolir a pobreza, mas nem sequer a caridade, a própria caridade cristã, consegue tirar a humilhação do receber. Menos ainda conseguem isto a filantropia e os demais equivalentes humanistas. Resolve isto verdadeiramente só a ascética cristã, valorizando a dor, exaltando o sofrimento: bem-aventurados os pobres . E também não se pode resolver naturalmente o problema árduo da sujeição à autoridade, no entanto necessária para que a sociedade possa sustentar-se. O fato de a autoridade ser necessária à existência da sociedade, não é argumento suficiente para que todos obedeçam à autoridade; e isto é evidente se se examinam as paixões humanas, especialmente o orgulho, a violência, a fraude, freqüentemente mais fortes em quem domina. E isto acontece não apenas na sociedade civil, mas também na religiosa, porquanto formada de homens. E, então, não fica senão a obediência no sentido cristão, ascético, como renúncia à própria vontade. Tal renúncia não é imoral, porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode objetivamente, de modo nenhum, transpor os confins da ética.

Finalmente, a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário. Precisamente pelo fato de que o homem, renunciando a si mesmo e dando-se em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso, imensamente capaz, cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas conforme à transcendente vontade de Deus, que criou o homem à sua imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A ética cristã da renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade - familiar, nacional, universal. De fato, a prescindir dos demais, mesmo razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferente às qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra limites no altruísmo, no heroísmo, mas uma oportunidade de engrandecimento mediante o sacrifício.

Este será o caminho percorrido - embora de modos diferentes - pelos santos, os super-homens do cristianismo: o caminho dos conselhos evangélicos, que é o caminho mais perfeito do que o dos preceitos . E os santos mais facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque é característica das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao mundo, cada qual realizando este ascetismo cristão com diversa intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, os lugares, os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e através desta renúncia ascética, que os santos se tornam os grandes benfeitores da humanidade.


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